A proposta deste blogue é incentivar boas discussões sobre o mundo econômico em todos os seus aspectos: econômicos, políticos, sociais, demográficos, ambientais (Acesse Comentários). Nele inserimos as colunas "XÔ ESTRESSE" ; "Editorial" e "A Hora do Ângelus"; um espaço ecumênico de reflexão. (... postagens aos sábados e domingos quando possíveis). As postagens aqui, são desprovidas de quaisquer ideologia, crença ou preconceito por parte do administrador deste blogue.
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[NÃO TEMOS A PRESUNÇÃO DE FAZER DESTE BLOGUE O TEU ''BLOGUE DE CABECEIRA'' MAS, O DE APENAS TE SUGERIR UM ''PENSAR GRANDE''].
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“Pode-se enganar a todos por algum tempo; Pode-se enganar alguns por todo o tempo; Mas não se pode enganar a todos todo o tempo...” (Abraham Lincoln).=>> A MÁSCARA CAIU DIA 18/06/2012 COM A ALIANÇA POLÍTICA ENTRE O PT E O PP.
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''Os Economistas e os artistas não morrem..." (NHMedeiros).
"O Economista não pode saber tudo. Mas também não pode excluir nada" (J.K.Galbraith, 1987).
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segunda-feira, dezembro 21, 2009
''BEST SELLER'' [In:] ''FIAT LUX''
Especial
A história sem fim
A Bíblia começou a ser escrita há mais de 3 000 anos, e desde
seu início se revelou um livro sem rival no poder de moldar culturas
e civilizações. Essa força permanece inesgotável: ler a Bíblia é essencial
para entender o mundo do qual viemos e em que vivemos hoje
AKG/Latinstock |
A Anunciação de Tintoretto (1518-1594) "Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Estando Maria, sua mãe, desposada com José, antes de se ajuntarem, achou-se ter concebido do Espírito Santo. Então José, seu marido, como era justo e a não queria infamar, intentou deixá-la secretamente. E, projetando ele isso, eis que, em sonho, apareceu-lhe um anjo do Senhor, dizendo: ‘José, filho de Davi, não temas receber contigo Maria, tua mulher, pois o que nela se gerou é obra do Espírito Santo. E ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos " Mateus 1:18-21 |
VEJA TAMBÉM |
• Quadro: Como a Bíblia se divide |
• Nesta edição: Teste: você conhece a Bíblia? |
"No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. Entrando onde ela estava, disse-lhe: ‘Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!’. Ela ficou intrigada com essa palavra e pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação. O Anjo, porém, acrescentou: ‘Não temas, Maria! Encontraste graça junto de Deus. Eis que conceberás no teu seio e darás à luz um filho, e tu o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado o Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim’. Maria, porém, disse ao Anjo: ‘Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum?’. O Anjo lhe respondeu: ‘O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra; por isso o Santo que nascer será chamado Filho de Deus. Também Isabel, a tua parenta, concebeu um filho na velhice, e este é o sexto mês para aquela que chamavam de estéril. Para Deus, com efeito, nada é impossível’. Disse então Maria: ‘Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!’. E o Anjo a deixou."
Extraída do Evangelho de São Lucas, a passagem acima é uma das mais belas e conhecidas daquele que é, por sua vez, o livro mais lido e célebre de todos os tempos – a Bíblia. Nela, é narrada a Anunciação, episódio seminal do Novo Testamento, a continuação cristã do livro sagrado dos judeus. Lucas nasceu no primeiro século de nossa era, em Antióquia, onde hoje é a Síria, e nunca chegou a conhecer Jesus: foi discípulo de Paulo, o grande disseminador da palavra de Cristo no mundo não judaico. Mas seu Evangelho é considerado uma obra de envergadura imensurável – e não só porque, ao lado dos Evangelhos de Mateus, Marcos e João, ele compõe o coração do Novo Testamento. Várias sumidades da história têm esse médico de origem grega na conta de um dos grandes de sua categoria – um historiador nato, ciente dos detalhes, afeito à precisão e surpreendentemente atento à necessidade de averiguar fatos. A história da qual Lucas faz a crônica está carregada de aspectos místicos: a de como Jesus nasceu de uma virgem, pregou uma mensagem transformadora, realizou milagres que comprovavam estar Ele imbuído do poder de Deus, e então foi perseguido, torturado e crucificado, para no terceiro dia após sua morte ressuscitar e ascender aos céus. Nas mãos desse autor, entretanto, fato e fé se fundem de maneira tão completa que, mesmo para um leitor ateu ou agnóstico, se torna um desafio separá-los.
Album/Latinstock | A Adoração dos Pastores de Tintoretto "Disseram os pastores uns aos outros: Vamos, pois, até Belém e vejamos isso que aconteceu e que o Senhor nos fez saber. E foram apressadamente e acharam Maria, e José, e o menino deitado na manjedoura." Lucas 2:15-16 |
O trecho em que o anjo Gabriel anuncia a concepção e o nascimento de Cristo é exemplar de seu estilo. Lucas narra o diálogo entre um anjo enviado por Deus – assunto de fé, portanto – e uma jovem. Mas provê data, lugar e circunstâncias, afere outro evento familiar (a gravidez de Isabel) e relata uma discussão sobre a viabilidade biológica da concepção por uma virgem. Só nessa pequena passagem, tem-se uma síntese de uma questão que está no centro da Bíblia. Como, afinal, esse livro escrito no decorrer de mais de 1.000 anos deve ser lido? Como uma transcrição direta da palavra de Deus, segundo creem tantos? Como a palavra divina inserida em um contexto terreno, o da relação com seu Deus de uma cultura que ia atravessando mudanças geográficas, políticas e sociais? Como um livro histórico, tão somente? Ou, conforme querem outros, como uma ferramenta que grupos diversos podem manejar na busca por poder e supremacia? Seria possível imaginar que, passadas tantas dezenas de séculos do advento desse livro, tais questões não mais teriam lugar no mundo moderno. Sucede exatamente o contrário. A religião nunca deixou de ser força motriz dos rumos da história do homem, tampouco fonte de tensão. E, na última década em especial, ela ressurgiu com efeito redobrado no centro do cenário político global. De onde ler a Bíblia – e entender como ler a Bíblia – não é nem de longe um conhecimento periférico na vida do século XXI.
Um nova-iorquino de origem judia, mas nascido em uma família sem nenhuma inclinação religiosa, deu uma contribuição interessante ao debate. Em 2005, o escritor e jornalista A.J. Jacobs decidiu que viveria o ano seguinte fazendo tal e qual a Bíblia manda – tanto o Velho como o Novo Testamentos. Jacobs, que já fizera fama como o autor de The Know-It-All, sobre os doze meses que passara lendo a Encyclopaedia Britannica de ponta a ponta, colecionou experiências estranhas em quantidade suficiente para escrever outro livro, The Year of Living Biblically (O Ano de Viver Biblicamente), lançado em 2007: suou frio para apedrejar um adúltero, como ordena o Velho Testamento, cultivou uma barba que teimava em guardar vestígios de suas últimas refeições e, uma vez que deixou de contar até mesmo aquelas mentirinhas sociais que tanto ajudam a civilização, passou por malcriado em mais de uma ocasião (veja entrevista na página 158). O livro, claro, é parte troça e golpe publicitário. Mas é também um curioso experimento de, digamos, teologia aplicada: é possível viver, nos dias de hoje, como se viveu 3 200 anos atrás, o período em que se estima que a Bíblia começou a ser escrita?
Vários ramos religiosos, sobretudo entre os judeus e os evangélicos, acham que sim: pode-se e deve-se viver exatamente como a Bíblia prescreve. No entender dessas correntes, o texto sagrado foi recebido diretamente de Deus e tem, portanto, de ser aceito de forma literal, sem interpretações nem relativizações. Mas Jacobs, ainda que por vias tão mundanas, provou um ponto relevante. Demonstrou que mesmo aqueles que acreditam que nada se acrescenta nem se subtrai à Bíblia fazem escolhas sobre seus ensinamentos. Caso contrário, só para ficar no exemplo mais prosaico, o noticiário estaria cheio de episódios de apedrejamento de adúlteros e adúlteras. Não está, porque não há comunidade religiosa judaica ou cristã que endosse tal prática, hoje considerada bárbara (e isso significa, sim, relativizar e interpretar). Também não se sabe de mulheres que tenham tido uma mão cortada por agarrar as partes pudendas de um homem para defender o marido em uma briga – como está dito em um dos volumes do Velho Testamento, o Deuteronômio. Até porque, convenha-se, a manobra não deve ser das mais fáceis.
Album/Latinstock | O Milagre do Maná de Tintoretto "Então, disse o Senhor a Moisés: Eis que vos farei chover pão dos céus, e o povo sairá e colherá cada dia a porção para cada dia, para que eu veja se anda em minha lei ou não. E comeram os filhos de Israel maná quarenta anos, até que entraram em terra habitada; comeram maná até que chegaram aos termos da terra de Canaã.." Êxodo 16:4-35 |
Exemplos como esses são extremos – e vulgares, claro. Servem apenas para ilustrar com cores berrantes um argumento sério: o de que ler a Bíblia ao pé da letra não significa apenas lidar com os descompassos provocados por tradições que mudaram, sumiram ou ofendem o conceito contemporâneo do que é ser justo e civilizado. O primeiro problema é outro: o que é o "pé da letra" na Bíblia? Em seu excelente livro A Arte da Narrativa Bíblica, o pesquisador americano Robert Alter, da Universidade da Califórnia em Berkeley, dedica-se a explicar que muito do que a Bíblia quer comentar está nas suas entrelinhas. Só para começar a conversa, Alter cita o estilo radicalmente contrastante de dois capítulos consecutivos do Gênese. No primeiro, o patriarca Jacó vê a túnica ensanguentada de seu filho José, presume que ele está morto e entrega-se a manifestações hiperbólicas de luto. O capítulo seguinte trata de uma situação similar, mas é de uma secura severa. Relata que outro patriarca, Judá, teve três filhos – Er, Onã e Selá. Sem mais firulas, informa que Er "desagradou a Deus", e Ele lhe tirou a vida. O mesmo aconteceu com Onã, que, obrigado a tomar o lugar do irmão na cama da cunhada, a fim de gerar um filho, interrompia o coito e "derramava sua semente no chão" (daí o termo "onanismo" para a masturbação). Deus tomou a Judá dois filhos, mas o texto não traz menção a nenhuma emoção que o pai porventura tenha sentido. Jacó tão teatral, e Judá tão frio: para Robert Alter, só o fato de a Bíblia justapor duas reações assim diversas já é um juízo sobre esses dois personagens importantes das Escrituras. Mas esse juízo não está no "pé da letra": está sugerido em um recurso estilístico sutil.
Muitos outros estudiosos se dedicam a mostrar como a forma, o estilo e a escolha de palavras são decisivos no que a Bíblia diz. E mais essencial ainda é o contexto em que ela diz o que diz. O judaísmo e seu descendente (e dissidente), o cristianismo, são fundamentalmente religiões narrativas – muito mais do que qualquer outra das grandes religiões, monoteístas ou não. Vem daí muito da força e da influência sem paralelo da Bíblia sobre o pensamento de uma parcela grande da humanidade, aquela abrangida no que se costuma chamar de civilização judaico-cristã: sem que se faça aqui nenhum julgamento, de natureza alguma, sobre o papel de cada uma das religiões na história dos homens, é um fato da ciência sociopolítica que o judaísmo e o cristianismo tiveram um impacto ilimitado nos rumos dessa história. Porque contam, entre todas as fés, com o mais extenso, detalhado, profundo e variegado plano jamais disposto para os seguidores de uma divindade, do surgimento do mundo ao seu fim, ou sua transmutação total no reino de Deus: a Bíblia, um conjunto vasto não apenas de ensinamentos, ditames e reflexões, mas de histórias arraigadas em nossa cultura. Para ateus e agnósticos, essa é uma razão para ler a Bíblia: para descobrir por que mesmo quem não crê compartilha a mesma herança que os que creem. É como se a Bíblia e a tradição que ela carrega fossem, enfim, o DNA da civilização ocidental: crer ou não crer corresponde àquela porcentagem infinitesimal de diferenças genéticas que nos separam – todo o resto, ou 99% dos genes, são comuns a todos nós.
The Bridgeman Art Library |
Sansão e Dalila de Tintoretto "E Sansão descobriu a Dalila todo o seu coração e disse-lhe: Nunca subiu navalha à minha cabeça, porque sou nazireu de Deus, desde o ventre de minha mãe; se viesse a ser rapado, ir-se-ia de mim a minha força, e me enfraqueceria e seria como todos os homens. Então, ela o fez dormir sobre os seus joelhos, e chamou a um homem, e rapou-lhe as sete tranças do cabelo de sua cabeça; e começou a afligi-lo, e retirou-se dele a sua força." Juízes 16:17-19 |
Quase tudo na Bíblia é uma história, um "caso", um relato, um testemunho. Mesmo naqueles livros do Velho Testamento que são, por assim dizer, manuais de instruções, como Levítico e Números, as injunções vêm na forma de historietas. Os Evangelhos são também isso: relatos sobre a passagem de Jesus sobre a Terra e sobre Sua missão. De imensa relevância ainda é o fato de que – ao contrário, digamos, do Corão – a Bíblia não tem um autor único nem foi escrita em um período de tempo delimitado. Bem longe disso: ela abrange algo como doze séculos de produção e vários idiomas (não bastasse isso, já foi traduzida para 2.400 línguas, entre as quais idiomas indígenas brasileiros). Combina uma miríade de formas narrativas distintas e envolve um sem-número de autores, muitos dos quais nunca virão a ser identificados, mas que se sabe provenientes das origens mais distintas, de profetas a funcionários de governo e pescadores. Com tantos cozinheiros na mesma cozinha, torna-se sobre-humana a tarefa de tentar decifrar a receita.
Há casos em que a Bíblia de fato se assume como a palavra recebida diretamente de Deus. Por exemplo, nas conclamações divinas ao povo eleito, muito comuns no Antigo Testamento, em que Ele exalta, pune, decide destinos e mostra aquilo que espera de seus seguidores ou o que não vai tolerar neles. Mas, em outros trechos essenciais, como nos Salmos, são já homens comuns (ou, vá lá, nem tanto, já que muitos dos Salmos são atribuídos ao rei Davi) que se dirigem a Deus. São frequentes também os simples registros de eventos, que podem ter certo teor mundano (muito espaço é dedicado a detalhar as linhas genealógicas, de grande relevância numa sociedade arcaica, ainda dividida em clãs) ou vir crivados de misticismo (como nos testemunhos dos milagres de Jesus). Outro caso: as belíssimas cartas do apóstolo Paulo, parte integrante do Novo Testamento, que delineiam os fundamentos da religião cristã na forma como é seguida até hoje, são comunicações de homens para homens. Há poemas de grande quilate, como o Cântico dos Cânticos, e o caso mais difícil de classificar – o delirante e perturbador Livro das Revelações, em que o apóstolo João descreve o apocalipse. Tudo o que a Bíblia contém trata em algum nível da relação do homem com Deus. Mas nem tudo nela pode ser descrito como a palavra direta de Deus.
Bíblia, enfim, é um mosaico intrincado no que toca às possibilidades de interpretação. Até porque, surpresa, ela não trata em miúdos de alguns dos temas em que é invocada com grande insistência. Hoje, é comum que as Bíblias evangélicas mais completas contenham um índice temático denominado "concordância." Procura-se uma palavra – digamos, "graça", ou "pobreza" – e o índice relaciona todas as ocasiões em que ela aparece em todo o imenso volume de texto. Isso porque, como já se disse, seguir a Bíblia à risca é fundamental para muitos dos ramos evangélicos, e a concordância ajuda-os a informar-se sobre o que a Bíblia tem a dizer a respeito de cada aspecto de sua vida e fé (os católicos, por contraste, apoiam-se mais na doutrina moral delineada pela Igreja). Tente-se procurar na concordância, entretanto, o termo "aborto": ele não constará. A Bíblia não trata de forma explícita ou direta da interrupção deliberada da gestação em nenhum trecho de seus milhares de páginas. Há possíveis alusões, como no capítulo 30 do Deuteronômio, muito usado pelos grupos antiaborto: "Hoje tomo o céu e a terra como testemunhas contra vós; eu te propus a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas tu e a tua descendência, amando ao Senhor teu Deus, obedecendo à sua voz e apegando-te a ele". Mas alguns pesquisadores, inclusive evangélicos, contradizem essa leitura. Segundo eles, o trecho é na verdade uma exortação aos israelitas em fuga do Egito para que não se desviem do caminho do Senhor. Como decidir, então, quem está certo?
A única resposta segura é que não há como decidir. A Bíblia moldou e amalgamou civilizações e manteve-se um texto obrigatório porque é de fato inesgotável. É uma, mas pode ser infinitas – até no seu aspecto mais concreto, o do sem-número de recortes que o mercado editorial encontra nela. Numa incursão a uma livraria (se for na internet, então, nem se fala), podem-se achar não apenas as edições canônicas de cada uma das religiões que seguem o texto sagrado – judaicas, católicas, luteranas, evangélicas, anglicanas, ortodoxas e assim por diante –, como Bíblias talhadas para virtualmente qualquer gosto. Há Bíblias para quem não conhece a Bíblia, com títulos como Entendendo a Bíblia em 30 Dias e O Guia do Completo Idiota para a Bíblia. Há Bíblias para meninos e para meninas. Para mulheres e para quem quer só lições de vida. No estilo do mangá, o quadrinho japonês, ou na pena do quadrinista underground Robert Crumb. Em gíria cockney da zona leste de Londres (com o selo de aprovação da Igreja Anglicana) ou em linguagem simples, no vozeirão de Cid Moreira.
á uma Bíblia, inclusive, que desempenhou papel de imensa relevância no que viria a se tornar a língua franca do mundo moderno, o inglês. Trata-se da versão conhecida como Bíblia do Rei James, encomendada por James I a um grupo de estudiosos em 1604, meses após sua ascensão ao trono, e concluída em 1611. Conciliar as tensões de seu tempo e consolidar a Igreja Anglicana como a fé da nação eram os requisitos a que a tradução pedida a seus sábios deveria atender. Eles, contudo, foram além: produziram um dos mais consumados exemplos de prosa poética que se conhece – uma prosa que arrebata pela beleza, inspira pelo calor e se coloca à disposição de quem a ouve pela clareza (diz a lenda que William Shakespeare deu uma mãozinha ao colegiado de estudiosos). Lida dos púlpitos para os fiéis, ou em casa por quem aprendera a fazê-lo (pouca gente, naquele tempo), a Bíblia do Rei James fez toda uma nação tomar contato com a escrita bela e benfeita. Não admira, assim, que tenha a reputação de transparecer uma inspiração divina.
Não importa qual seja a versão, duas coisas são cristalinas e constantes na Bíblia. A primeira é que cada uma das partes desse texto sagrado, sejam elas as aceitas pelos cristãos ou pelos judeus, é como que um tijolo no edifício que se pode chamar de o plano de Deus para os homens. E a segunda é que cada um desses tijolos traz alguma marca, mais ou menos profunda, do tempo em que foi moldado: a Bíblia é singular entre os textos sagrados também por ser uma crônica extensa e detalhada da civilização à qual ia dando forma. É, em certo sentido, uma reportagem. Uma reportagem colorida pelas crenças típicas da época em que cada trecho foi escrito (como na ideia de que um patriarca como Matusalém possa ter chegado aos 969 anos de idade, como está dito no Gênese), ou moldada para inculcar esta ou aquela impressão no leitor. Mas até nesses ornamentos, por assim dizer, é uma crônica dos povos que a escreveram e da maneira como viviam e pensavam.
Santa Maria Della Salute |
As Bodas de Canaã de Tintoretto "E, ao terceiro dia, fizeram-se umas bodas em Canaã da Galileia; e estava ali a mãe de Jesus. E foram convidados também Jesus e os seus discípulos para as bodas. E, faltando o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Não têm vinho. Disse-lhes Jesus: Enchei de água essas talhas. E encheram-nas até em cima. E disse-lhes: Tirai agora e levai ao mestre-sala. E, logo que o mestre-sala provou a água feita vinho (não sabendo de onde viera, se bem que o sabiam os empregados que tinham tirado a água), chamou o mestre-sala ao esposo. E disse-lhe: Todo homem põe primeiro o vinho bom, e quando já têm bebido bem, então, o inferior; mas tu guardaste até agora o bom vinho." João 2:1-3/7-10 |
Um exemplo comezinho: o Velho Testamento diz que não se devem consumir a carne de porco ou os crustáceos, por serem impuros. Assim, os judeus ortodoxos mantêm deles a distância preconizada pelo texto. Vários estudiosos, entretanto, veem em interditos como esse uma tentativa de organizar o cotidiano das pessoas comuns. Dezenas de séculos atrás, quando as condições de obtenção e conservação das proteínas animais eram precaríssimas, carnes como a suína e a dos frutos do mar, que se deterioram com grande velocidade, constituíam um problema grave de saúde. Que maneira mais eficaz teriam os líderes de uma comunidade de evitar os envenenamentos alimentares, especulam esses estudiosos, do que proibi-los com um veto divino? Ou de, para instituir o hábito de um mínimo de higiene pessoal, ordenar em um texto sagrado que se realizem abluções antes de orar a Deus? Até um dos grandes cismas entre o judaísmo e o cristianismo – o sacramento do batismo, fundamental para os cristãos – teria uma origem socioeconômica clara. Para se purificar e honrar a Deus, os judeus tinham de peregrinar até o Templo de Jerusalém e ali oferecer sacrifícios de animais como pombas e cordeiros. Para uma população em geral muito pobre, como a da Palestina do século I a.C., o sacrifício começava, na verdade, com o esforço de juntar os meios materiais para a viagem e a compra dos animais. O batismo, que Jesus conheceu no seu encontro com São João Batista, que o mergulhou no Rio Jordão, não acarreta (ou não acarretava, quando ainda não era acompanhado de festinhas ou festanças, como hoje) custo nenhum: é um ato que pode ser realizado em qualquer lugar e requer apenas água, algumas gotas de óleo e um sacerdote para que se estabeleça a comunicação com Deus e se peça o ingresso em seu povo, renunciando-se ao mal por meio apenas de um testemunho oral. Simples e acessível – e não por acaso um sucesso entre várias parcelas da população que sentiam que a classe sacerdotal e os ritos se interpunham entre elas e Deus, em vez de aproximá-los.
Corbis/Latinstock |
A Criação dos Animais de Tintoretto "E disse Deus: Produzam as águas abundantemente répteis de alma vivente; e voem as aves sobre a face da expansão dos céus." Gênese 1:20 |
À medida que o Ocidente se torna cada vez mais secular, mais também vem à tona esse caráter factual na leitura que se faz da Bíblia. Em que medida se aceita ou não seu caráter de crônica, porém, é talvez o impasse mais candente que a Bíblia provoca. Duas questões importantíssimas se imiscuem nessa tentativa de enxergar o simples em algo que é tão complexo. A primeira, que acompanha qualquer texto sagrado desde sua gestação, é que tudo nele que pode ser ligado a um dado da realidade tem também (ou principalmente, para muitos) um componente divino. Um judeu dos dias de hoje que segue sua fé de forma mais livre pode decidir que, na era das normas sanitárias e da refrigeração, comer camarões em nada fere os princípios espirituais e morais que lhe foram legados. Um casal cristão moderno pode raciocinar que, se Deus é a bondade suprema, como os Evangelhos ensinam, Ele jamais condenaria seu bebê à danação caso ele morresse sem ser batizado. Outros judeus e outros cristãos de persuasões mais rigorosas argumentariam que não é possível escolher, da religião, o que convém e o que não convém, já que a palavra de Deus é una e não deve ser fragmentada; para estes, as regras alimentares ou os sacramentos existem dentro de um contínuo que é indivisível e deve ser respeitado na íntegra, por mais duras que pareçam as regras. Assim, transgredir à mesa ou postergar um pouco determinadas cerimônias não seriam meros pecadilhos. Constituiriam ofensas a Deus, e toda ofensa a Deus, ainda que pareça irracional ao olhar moderno, seria igualmente irredimível.
Essa tensão entre o certo e o herético é tão antiga quanto as mais antigas palavras da Bíblia. Um texto sagrado se define como a verdade absoluta. E um texto sagrado que transporta tantas contradições e imprecisões, que é ora tão minucioso, ora tão alusivo e alegórico, e que carrega tanta história vivida – de um povo que acreditou ter sido escolhido e então foi escravizado, que perdeu sua terra, recuperou-a e então suportou uma ocupação estrangeira, que construiu um templo e duas vezes o viu tombado, e por fim enfrentou um cisma de proporções colossais, quando um dos seus fundou uma nova religião a partir da sua –, é um texto crivado de oportunidades para a tensão. Deslindar o que a Bíblia diz, afinal, é traduzir Deus. Mas nunca se soube de dois tradutores que coincidissem em suas respectivas versões de um texto. E essa volatilidade da Bíblia, esse seu poder de ser ao mesmo tempo tão clara e tão fugidia, movimentou convulsões na história dos povos que a seguem. A decisão dos judeus de renovar até as últimas consequências sua aliança com Deus e assim se configurar como um povo separado dos demais, o fogo ateado à insatisfação geral que foi o nascimento do cristianismo, a irrupção da Reforma Protestante e sua perseguição selvagem pela Inquisição, os rios de sangue que, no século XX, ainda corriam na Irlanda dividida entre católicos e protestantes, a tentativa brutal de supressão da fé por aquela outra doutrina deífica, o comunismo – milhões de homens e mulheres foram mortos ou se sacrificaram por essa verdade que, não há como ignorar, está sempre em transformação.
Para quem acha que a Bíblia é uma coleção de histórias da carochinha escritas por pessoas talvez meio instáveis, com uma queda para o fantástico e a violência (e o Velho Testamento é repleto de casos de arrepiar os cabelos), um alerta: a disputa pela posse dessa verdade completa e absoluta continua a fazer estremecer a história. No Brasil, o crescimento vertiginoso do evangelismo muda não só costumes entre as parcelas da população que aderem a ele como pode, no limite, vir a alterar um dos epítetos pelos quais o país é conhecido – o de a maior nação católica do mundo. Nos Estados Unidos, onde a liberalização da moral e da legislação, a partir dos anos 1960, criou tensões imensas com a populosa faixa dos americanos que acham que toda lei e todo código devem emanar da Bíblia, surgiram paradoxos incompreensíveis. Por exemplo, os grupos contra o aborto que, na defesa intransigente da vida, matam médicos e enfermeiras de clínicas que realizam a prática. Até o mais explosivo ingrediente da política global, o conflito no Oriente Médio entre árabes e judeus e suas infinitas ramificações, tem um componente bíblico – o estabelecimento do estado de Israel, em 1948, na região que, no Gênese, consta como a terra prometida dos judeus. Não é preciso crer, enfim, para entender que a Bíblia não é apenas "a maior história de todos os tempos", como se costuma dizer. Mais de 3 000 anos depois de ter começado a ser escrita, ela é ainda a maior história deste tempo.
Um Ano Muito Estranho
Em agosto de 2005, iniciou-se um ano estranho para o nova-iorquino A.J. Jacobs. O escritor e jornalista decidiu que, nos quase 400 dias seguintes, viveria estritamente de acordo com os ditames da Bíblia, dos mais conhecidos aos mais obscuros. Jacobs enfrentou questões imensas, como não mentir nem uma mentirinha, por mais social que fosse,
ou não cobiçar mulheres que não a dele, nem mesmo as hipotéticas (o que o levou a cobrir com fita-crepe a figura sedutora de uma gueixa em um rótulo de chá).
E enfrentou também questões bizarras, como não semear dois tipos de grão no mesmo campo (fácil de seguir, já que em Nova York áreas de plantio são mesmo artigo incomum), ou como decidir onde se sentar no metrô ou numa lanchonete, já que assentos que tenham sido ocupados por mulheres no período menstrual ficam impuros (por via das dúvidas, ele às vezes carregava um banquinho). Jacobs narrou esses e outros episódios vividos no período em que circulou barbudo e de túnica branca por Manhattan no livro The Year of Living Biblically (O Ano de Viver Biblicamente), que lançou em 2007. A seguir, ele faz um balanço da sua experiência ao correspondente de VEJA em Nova York, André Petry.
Qual foi a situação mais extraordinária daqueles 387 dias?
Foi cumprir o mandamento bíblico de apedrejar os adúlteros. Você há de entender que isso não combina muito com a Manhattan dos dias de hoje. Acabei usando seixos, aquelas pedrinhas de cascalho, bem miudinhas, de modo que ninguém saísse ferido.
Das 700 orientações que o senhor extraiu da Bíblia, qual lhe pareceu a mais inexplicável?
A que proíbe o uso de roupas com mistura de fibras. As roupas devem ser feitas de um único tipo de fibra, sem combinações. Isso exige uma administração microscópica. Que diferença faz para Deus se estou usando camisa só de algodão ou se tem algodão e poliéster?
O que é mais fácil de seguir: o Velho ou o Novo Testamento?
Essa é uma pergunta complicada. Há mais regras no Velho Testamento, mas no Novo Testamento Jesus fala em perdoar e amar seu inimigo. Isso é dureza.
O senhor acha que alguém na história seguiu os mandamentos bíblicos literalmente, incluindo Jesus Cristo?
As pessoas pegam umas partes para seguir ao pé da letra e excluem outras. Todos nós praticamos uma religião de padaria, incluindo e excluindo elementos.
É possível identificar na Bíblia o que deve ser tomado como literal e o que é apenas metafórico?
Acredito que sempre haverá uma discussão sobre isso e nunca chegaremos a uma conclusão inequívoca.
Como não se pode falar o nome de outros deuses (êxodo, 23:13), então é proibido torcer para a tenista Venus Williams?
No Velho Testamento, de fato, não se pode dizer o nome de deuses pagãos, como Vênus. Acredito que você possa torcer pela Venus Williams, mas não deve ficar berrando o nome dela. Ou, melhor ainda, torça pela Serena.
Pelas suas contas, a Bíblia faz quarenta referências negativas ao uso de bebidas alcoólicas, 62 neutras e 145 positivas. Afinal, como um respeitador da Bíblia deve encarar a bebida?
No geral, o vinho é um exemplo da bênção de Deus, mas só quando bebido com moderação. A Bíblia tem muitas histórias de gente que bebeu demais e acabou se encrencando. Noé se embebedou uma vez e terminou desmaiando, só que desmaiou pelado, o que causou todos os problemas possíveis.
O valor da Bíblia certamente não está em seguir seus ensinamentos ao pé da letra. Onde está?
A Bíblia é cheia de sabedoria, cheia de compaixão, e o fato de tê-la vivido por mais de um ano mudou minha vida para sempre. Essa experiência mudou minha vida de uma forma muito profunda.
O senhor acredita em Deus?
Depois de um ano, eu comecei a frequentar uma sinagoga e matriculei meus filhos numa escola judaica. Continuo agnóstico, pois não sei se Deus existe. Mas tenho profundo respeito pelo conceito do sagrado.
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http://veja.abril.com.br/231209/historia-sem-fim-p-152.shtml
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