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Fragmentos do voto proferido pelo eminente Ministro CELSO DE MELLO,
na AP 470/MG, na sessão plenária de
1º de outubro de 2012.
“...............................................................
Entendo que o Ministério Público expôs na peça acusatória
eventos delituosos revestidos de extrema gravidade e imputou aos
réus ora em julgamento ações moralmente inescrupulosas e penalmente
ilícitas que culminaram, a partir de um projeto criminoso por eles
concebido e executado, em verdadeiro assalto à
Administração Pública, com graves e irreversíveis danos ao princípio
ético-jurídico da probidade administrativa e com sério
comprometimento da dignidade da função pública, além de lesão a
valores outros, como a integridade do sistema financeiro nacional, a
paz pública, a credibilidade e a estabilidade da ordem
econômico-financeira do País, postos sob a imediata tutela jurídica
do ordenamento penal.
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Quero registrar, neste ponto, Senhor Presidente, tal como
salientei em voto anteriormente proferido neste Egrégio Plenário,
que o ato de corrupção constitui um gesto de perversão da ética do
poder e da ordem jurídica, cuja observância se impõe a todos os
cidadãos desta República que não tolera o poder que corrompe nem
admite o poder que se deixa corromper.
Quem transgride tais mandamentos, não importando a sua posição
estamental, se patrícios ou plebeus, governantes ou governados,
expõe-se à severidade das leis penais e, por tais atos, o corruptor
e o corrupto devem ser punidos, exemplarmente, na forma da lei.
Este processo criminal revela a face sombria daqueles que, no
controle do aparelho de Estado, transformaram a cultura da
transgressão em prática ordinária e desonesta de poder, como se o
exercício das instituições da República pudesse ser degradado a uma
função de mera satisfação instrumental de interesses governamentais
e de desígnios pessoais.
Fácil constatar, portanto, considerados os diversos elementos
legitimamente produzidos nestes autos e claramente demonstrados pelo 2
eminente Relator, que a conduta dos réus, notadamente daqueles que
ostentam ou ostentaram funções de governo, não importando se no
Poder Legislativo ou no Poder Executivo, maculou o próprio espírito
republicano.
Em assuntos de Estado e de Governo, nem o cinismo, nem o
pragmatismo, nem a ausência de senso ético, nem o oportunismo podem
justificar, quer juridicamente, quer moralmente, quer
institucionalmente, práticas criminosas, como a corrupção
parlamentar ou as ações corruptivas de altos dirigentes do Poder
Executivo ou de agremiações partidárias.
Extremamente precisa a observação, sempre erudita, do Professor
Celso Lafer, quando, ao discorrer sobre o espírito republicano,
acentua, a partir de Montesquieu, que “o princípio que explica a
dinâmica de uma República, ou seja, o sentimento que a faz durar e
prosperar, é a virtude. É nesse contexto que se pode dizer que a
motivação ética é de natureza republicana. Isso passa (...) pela
virtude civil do desejo de viver com dignidade e pressupõe que
ninguém poderá viver com dignidade numa comunidade política
corrompida”.
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É por isso, Senhores Ministros, que a concepção republicana de
poder mostra-se absolutamente incompatível com qualquer prática
governamental tendente a restaurar a inaceitável teoria do Estado
patrimonial.
Com o objetivo de proteger valores fundamentais, Senhor
Presidente, tais como se qualificam aqueles consagrados nos
princípios da transparência, da igualdade, da moralidade e da
impessoalidade, o sistema constitucional instituiu normas e
estabeleceu diretrizes destinadas a obstar práticas que culminem por
patrimonializar o poder governamental, convertendo-o, em razão de
uma inadmissível inversão dos postulados republicanos, em verdadeira
“res domestica”, degradando-o, assim, à condição subalterna de
instrumento de mera dominação do Estado, vocacionado, não a servir
ao interesse público e ao bem comum, mas, antes, a atuar como
incompreensível e inaceitável meio de satisfazer conveniências
pessoais e de realizar aspirações governamentais e partidárias.
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O fato é um só, Senhor Presidente: quem tem o poder e a força do
Estado, em suas mãos, não tem o direito de exercer, em seu próprio
benefício, a autoridade que lhe é conferida pelas leis da República.
A gravidade da corrupção governamental, inclusive aquela
praticada no Parlamento da República, evidencia-se pelas múltiplas
consequências que dela decorrem, tanto aquelas que se projetam no
plano da criminalidade oficial quanto as que se revelam na esfera
civil (afinal, o ato de corrupção traduz um gesto de improbidade
administrativa) e, também, no âmbito político-institucional, na
medida em que a percepção de vantagens indevidas representa um
ilícito constitucional, pois, segundo prescreve o art. 55, § 1º, da
Constituição, a percepção de vantagens indevidas revela um ato
atentatório ao decoro parlamentar, apto, por si só, a legitimar a
perda do mandato legislativo, independentemente de prévia condenação
criminal.
A ordem jurídica, Senhor Presidente, não pode permanecer
indiferente a condutas de membros do Congresso Nacional – ou de
quaisquer outras autoridades da República – que hajam eventualmente
incidido em censuráveis desvios éticos e reprováveis transgressões
criminosas, no desempenho da elevada função de representação
política do Povo brasileiro.
Sabemos todos que o cidadão tem o direito de exigir que o Estado
seja dirigido por administradores íntegros, por legisladores probos
e por juízes incorruptíveis.
O direito ao governo honesto – nunca é demasiado reconhecê-lo –
traduz uma prerrogativa insuprimível da cidadania.
A imputação, a qualquer membro do Congresso Nacional, de atos
que importem em transgressão ao decoro parlamentar revela-se fato
que assume, perante o corpo de cidadãos, a maior gravidade, a
exigir, por isso mesmo, por efeito de imposição ética emanada de um
dos dogmas essenciais da República, a repulsa por parte do Estado,
tanto mais se se considerar que o Parlamento recebeu, dos cidadãos,
não só o poder de representação política e a competência para
legislar, mas, também, o mandato para fiscalizar os órgãos e agentes
dos demais Poderes. 4
Vê-se, nesse ponto, a íntima correlação entre a própria
Constituição da República, em face de que prescreve o seu art. 55,
§ 1º, e a legislação penal.
Qualquer ato de ofensa ao decoro parlamentar, como a aceitação
criminosa de suborno, culmina por atingir, injustamente, a própria
respeitabilidade institucional do Poder Legislativo, residindo,
nesse ponto, a legitimidade ético-jurídica do procedimento
constitucional de cassação do mandato parlamentar, em ordem a
excluir, da comunhão dos legisladores, aquele – qualquer que seja –
que se haja mostrado indigno do desempenho da magna função de
representar o Povo, de formular a legislação da República e de
controlar as instâncias governamentais do poder.
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Importante destacar, Senhor Presidente, as gravíssimas
consequências que resultam do ato indigno (e criminoso) do
parlamentar que comprovadamente vende o seu voto e que também
comercializa a sua atuação legislativa em troca de dinheiro ou de
outras indevidas vantagens.
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A corrupção deforma o sentido republicano de prática política,
compromete a integridade dos valores que informam e dão significado
à própria ideia de República, frustra a consolidação das
instituições, compromete a execução de políticas públicas em áreas
sensíveis como as da saúde, da educação, da segurança pública e do
próprio desenvolvimento do País, além de afetar o próprio princípio
democrático.
Daí os importantes compromissos internacionais que o Brasil
assumiu em relação ao combate à corrupção, como o evidencia a
subscrição, por nosso País, da Convenção Interamericana contra a
Corrupção (celebrada na Venezuela em 1996) e da Convenção das Nações
Unidas (celebrada em Mérida, no México, em 2003).
As razões determinantes da celebração dessas convenções
internacionais (uma, de caráter regional, e outra, de projeção
global) residem, basicamente, na preocupação da comunidade
internacional com a extrema gravidade dos problemas e das
consequências nocivas decorrentes da corrupção para a estabilidade e
a segurança da sociedade, eis que essa prática criminosa enfraquece
as instituições e os valores da democracia, da ética e da justiça, 5
além de comprometer a própria sustentabilidade do Estado democrático
de direito, considerados os vínculos entre a corrupção e outras
modalidades de delinquência, com particular referência para a
criminalidade organizada, a delinquência governamental e a lavagem
de dinheiro.
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Esses vergonhosos atos de corrupção parlamentar, profundamente
lesivos à dignidade do ofício legislativo e à respeitabilidade do
Congresso Nacional, alimentados por transações obscuras idealizadas
e implementadas em altas esferas governamentais, com o objetivo de
fortalecer a base de apoio político e de sustentação legislativa no
Parlamento brasileiro, devem ser condenados e punidos com o peso e o
rigor das leis desta República, porque significam tentativa imoral e
ilícita de manipular, criminosamente, à margem do sistema
constitucional, o processo democrático, comprometendo-lhe a
integridade, conspurcando-lhe a pureza e suprimindo-lhe os índices
essenciais de legitimidade, que representam atributos necessários
para justificar a prática honesta e o exercício regular do poder aos
olhos dos cidadãos desta Nação.
Esse quadro de anomalia, Senhor Presidente, revela as
gravíssimas consequências que derivam dessa aliança profana, desse
gesto infiel e indigno de agentes corruptores, públicos e privados,
e de parlamentares corruptos, em comportamentos criminosos,
devidamente comprovados, que só fazem desqualificar e desautorizar,
perante as leis criminais do País, a atuação desses marginais do
Poder.
...............................................................”
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