RABINO HENRY SOBEL
O pecado, o pecador e o pregador
(Claudio Julio Tognolli )
Perdoa-se o pecador. Mas jamais o pregador.
O leitor que deu com os jornais na semana passada, e o jornalista que teve o cuidado de coletar comentários esparsos, no dia-a-dia das redações, sobre a prisão do rabino Henry Sobel, deparou-se com um clima de desbunde generalizado. Era bulir com o assunto e surfava, nem o menor esforço, nas ondas do pior do anti-semitismo e no melhor do humor judaico. Parecia aquilo que os antigos chamavam de "alívio grego" - ao que tudo indica tenha sido tirado de um axioma de Aristóteles. A saber: sorte é quando a flecha atinge quem está do nosso lado. Hienas de redação, sicofantas da net, esganiçavam seus risos torpes: o rabino que, tantas vezes esplenético, vendia moral, tinha tido o seu dote e dia de imoralista. E em grande estilo: no veraneio predileto dos Kennedy, Palm Beach, e com gravatas de nomes sonoros e preços sugerindo singulares coleções de zeros.
Um e-mail que rodou a net, na sexta-feira (30/3), ensaiava as manchetes engraçadinhas que alguns veículos dariam sobre a prisão. Referia o seguinte:
Folha de São Paulo: "Hoje, pela primeira vez na história, o rabino Sobel não foi localizado para comentar uma matéria".
Diário do Nordeste: "Rabino robano".
Caras: "As gravatas eram iguais. Como Ésper, ele roubou um par de vasos".
Islã News: "Judeu abre a mão nos EUA".
Casseta e Planeta: "Sobel toma no rabino".
Homens-lixo, homens-exemplo
Por que tanta polêmica? Ok, dirão, não é todo o dia que uma "otoridade" brazuca tem seu dia de Wynona Ryder. Não é todo dia que uma "otoridade" brazuca consta daquilo que, na imprensa dos EUA, é derrisoriamente chamado de "mugshots", que são as fichas fotográficas feitas pelos policiais nos flagrantes. Aliás, jornalistas dos EUA fizeram
uma página exclusivamente dedicada às autoridades "mugshoted".
Mas Sobel foi vítima de um dos piores axiomas instalados pela prelazia midiática: aquele a rezar o missal de que o homem é igual a sua obra. O pessoal que estuda estética marxista sabe bem o que isso significa. No marxismo sério, não o groucho-marxismo brazuca, de academia, alguém já chamou a isso de "o mal do Nobel".
A saber: para o Prêmio Nobel de Literatura, por exemplo, homem tem se ser igual à sua obra. José Saramago, o marxista parlapatão e escritor genial, parece, aos olhos do Nobel, um construto humano em que a atividade de "comuna" casa bem com sua obra libertária. Só leva Nobel aquele cuja "militância de vida" se casa com a "militância de obra". O mal do Nobel solapa aquilo pelo qual tanto Karl Marx lutou: a obra se aliena do autor. Homens-lixo podem fazer obras geniais. Homens-exemplo podem ser autores de obras pré-coerentes.
Homem não se mistura com obra do homem. Ou por outra, como disse Nietzsche em Ecce Homo: uma coisa sou eu, outra são os meus escritos.
"O realismo venceu".
Vejamos. Jorge Luis Borges, escritor genial, de obra libertária: apoiava a ditadura argentina. Não levou o Nobel porque certa feita disse que "a única contribuição da África para a civilização foi a escravidão e os ritmos lascivos".
Arthur Schopenhauer: emprestou sua luneta para que um fiscal prussiano acertasse na mente um revolucionário (fez isso enquanto escrevia sua obra O mundo como vontade e representação, de resto a predileta de Freud e Einstein).
Vejamos o próprio Einstein, gênio, militante político pacifista, capaz de negar carta de recomendação a judeus perseguidos (fato inédito a constar de livro, em fase de gestação, do uspiano Gildo Magalhães, que lhe conseguiu as cartas ainda inéditas). Tudo isso para dizer: a obra do homem não se mistura com o homem de carne e osso."
Karl Max foi o primeiro a demonstrar isso naqueles documentos chamados "Cartas à Madame Harkness". Tais missivas constituem o mais reluzente relicário da estética marxista. Madame Harckness escreve a Marx. Pergunta se ele não gostava das peças de Lassalle, advogado e militante comunista. Marx respondeu que não lhe engole as peças de teatro, a que chama de "libelos". Diz à madame que prefere Balzac, sabidamente um conservador, mas cujas obras são libertárias. "O realismo venceu sobre Balzac", diz Marx.
Nada a ver
Ou seja: homem é uma cousa. Obra do homem é outra cousa. A obra se aliena do autor. Bons cristãos podem escrever obras medíocres. Sacripantas, pústulas e calcetas, condenados porventura por terem matado pai e mãe para poder ir beber no bar dos órfãos, podem eventualmente escrever obras geniais.
Mas a ética da mídia é a pobre ética do Prêmio Nobel: o homem tem de ser igual à sua obra. Ou você é uma cousa, ou você é outra cousa. Eis toda a ética do Vaticano e de Bento 16, chamada non tertio datur, vulgo "não reconheço a terceira via". Ou você é "do bem", ou você é "do mal". Não foi para menos que em abril de 2005 Bento 16 fez um discurso em que condenava "o excesso de relativismo reinante no mundo".
Henry Sobel não foi crucificado porque, como se diz em redações, "homem público deve ser responsável por todos e todos os seus atos". Foi crucificado porque, na ética do reportariado capenga e dos editores bipolares, tudo pressupõe, como num inquérito policial, o estatuto da autoria: ou culpado por tudo, ou inocente por tudo. Non tertio datur.
A obra de Sobel nesses 30 anos não tem nada a ver com o atrabiliário e colérico ladravaz que querem-no pintado. Sua obra fica. Vão-se as gravatas.
Mas quem esperaria outra cousa? Perdoa-se o pecador. Mas jamais o pregador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário