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sexta-feira, novembro 27, 2009

''CRACK" [In:] UMA FISSURA NA ''CÉLULAR MATER'' DA SOCIEDADE...

CRACK O FLAGELO DAS FAMÍLIAS

AS DORES DE UM VÍCIO


Autor(es): # Samanta Sallum
Correio Braziliense - 27/11/2009

Crack dilacera famílias pobres e ricas, no interior e na capital. Enquanto uma mãe atira no filho viciado, um pai se preocupa com os roubos, as ameaças de traficantes e as internações constantes por causa da “pedra da morte”



Enviada especial

Cynthia Vanzella/Zero Hora/D.A Press - 23/4/09
Flávia, 60 anos, mãe de Tobias: “Queria mais uma chance para salvar o meu filho. Queria ele de novo, mesmo daquele jeito”


Domingo de Páscoa, 12 de abril. Para Tobias, não fazia diferença que dia era. Não havia mais dias nem noites. A fissura provocada pelo vício do crack tornava sem sentido qualquer calendário. O crack matou o rapaz de 25 anos e marcantes olhos azuis. A droga fez a mãe apontar uma arma para o único filho. Um filho fora de controle, violento, irreconhecível, que ameaçava incendiar a casa, num bairro nobre de Porto Alegre (RS). A pedra de crack que custa apenas “cinco pila”, como dizem, até então considerada droga de periferia, de mendigo, invadiu lares da elite da capital gaúcha e fez uma de suas vítimas ser morta pela própria mãe, num momento de desespero.

Seis meses depois da tragédia, Flávia Costa Hahn, 60 anos, que chegou a ser presa, sente-se tão sem vida quanto o filho que se foi. Sente-se derrotada na luta que travou durante anos para resgatá-lo das drogas. Foram oito internações e mudanças de cidade para afastá-lo dos traficantes. Chegaram a morar em Brasília entre 2002 e 2004, quando Tobias conseguiu deixar a cocaína. Mas não adiantou. Na volta a Porto Alegre, o crack se apoderou do corpo e da alma do rapaz, que chegou a ser modelo.

Flávia recebeu o Correio em sua casa, no cenário onde teve a última discussão com o filho. Numa entrevista exclusiva, dispôs-se a falar no assunto. Foi à beira da piscina, na pérgula com vista de cartão-postal para o Rio Guaíba, numa casa de três andares que conversamos. Flávia apontou para as portas e janelas envidraçadas. “Tá vendo todos os esses vidros? Tive de trocá-los várias vezes. Ele quebrava tudo, quando queria dinheiro para comprar pedra”, relembrou.

O consumo de drogas começou aos 14 anos. A escalada de Tobias foi maconha, cocaína e crack. Flávia tinha de lidar diretamente com os traficantes que ficavam numa boca de fumo a 200m de sua casa. “Um deles usava a jaqueta do meu marido, que Tobias tinha dado em troca de crack.” Nos últimos tempos, tinha virado rotina ir ao ponto do tráfico resgatar o que o filho deixava, contou ela lançando o olhar para um tapete persa da sala de estar. “Aquele ali tive de buscar também. Eram objetos de valor financeiro e sentimental. Tobias sabia que eu iria pegar de volta”, relatou.

De príncipe a mendigo//

Filho da representante comercial e de um engenheiro alemão, Tobias gostava de futebol, de Bob Marley e era gremista. Chamava atenção pela beleza, e chegou a ser convidado a fazer teste para o programa da Xuxa. Mas foi rápida a transformação do príncipe em mendigo. Envolveu-se com gangue de assaltos e roubava cartão de crédito. Tinha de ser arrastado para ser internado. A família chegava a pagar clínicas com diária de R$ 400. Batia em Flávia quando ela se recusava a dar dinheiro. Abandonou os estudos e não conseguia trabalhar. Chegava a consumir 10 pedras por dia.

Foi com o revólver .44 do marido que Flávia, numa tentativa de assustar o filho que a ameaçava, acabou fazendo o disparo fatal. Momento de que não quer mais se lembrar. Segundo relato à polícia, Manfred (o marido) tinha a arma por receio de assaltos. Por volta das 14h daquele domingo de Páscoa, Tobias, que passava grande parte das noites na boca de fumo, apareceu. Almoçou e depois chamou a mãe para a cozinha. Queria dinheiro. Flávia não quis dar. O rapaz pegou a mãe pelos cabelos e a arrastou. Ele insistia e Flávia se mantinha irredutível. Não queria mais dar dinheiro para o filho comprar crack.

Tobias quebrou louças, jogou a mãe sobre os cacos, girou os botões do fogão para liberar gás, pegou o isqueiro e ameaçou explodir a cozinha com ela dentro. Flávia fugiu e abriu o canil soltando dois cães rottweillers, tentando se proteger com os cachorros. Descontrolado, o filho pegou uma faca. Foi quando a mãe encontrou o revolver do marido, que estava no armário próximo, apenas para assustar, atirando para cima. Mas acabou pegando no pescoço do rapaz.

A Justiça ainda vai decidir por que crime Flávia responderá. Provavelmente homicídio sem intenção de matar. Pode ser ainda que o juiz entenda, mesmo que ela seja condenada, que não há necessidade de prisão devido ao já sofrimento causado pela tragédia à acusada. Flávia chegou a ser presa no dia, depois foi internada devido ao estado de choque. Hoje é acompanhada por psiquiatras e responde o processo em liberdade. “Eu queria tentar de novo. Queria mais uma chance para salvar o meu filho. Queria ele de novo, mesmo daquele jeito”, desabafa.

O único esboço de reconstrução de vida de Flávia é quando fala da vontade de ajudar a criar um centro de reabilitação de dependentes químicos, que teria o nome do filho. Hoje, ela já ajuda uma amiga do filho que também está viciada e foi expulsa de casa. E reclama das autoridades e da falta de estrutura do sistema de saúde pública para lidar com o problema. No Rio Grande do Sul, o consumo de crack é apontado como epidemia. São 55 mil usuários no estado, segundo dados oficiais. Mas estima-se que os números sejam bem maiores.



A fissura
Quando ele estava na fissura, me obrigava a dar dinheiro. Puxava meu cabelo, me empurrava escada abaixo. Tudo que podia trocava por droga. Um dia, me pediu para comprar peixe, queria comer peixe, que eu cozinhasse. Comprei salmão. Quando fui ver depois na geladeira, tinha sumido. Tobias tinha dado o peixe ao traficante, trocado por pedra. Outro dia, cheguei na cozinha e minha lava-louças não estava mais lá. Foi som, televisão, roupa, sapato. Ele virou um maltrapilho

O prejuízo
De madrugada, tinha de sair para ir a banco 24 horas, forçada. Ele já me tirou de casa ameaçando me dar soco, quando surtava me batia. Não parava à noite em casa, saía a toda hora. Perambulava. Quando não conseguia comprar a pedra, virava meia garrafa de cachaça. E não ficava tonto. Apenas ajudava a acalmar a fissura

O desespero
Um dia fiquei com raiva, fui lá, briguei com o traficante. O desespero é tanto que a gente nem sente medo. Eu sentia nojo deles. Me sentia diminuída. Mas eles se matam. Duas semanas depois que meu filho morreu, fiquei sabendo que os traficantes que vendiam as pedras para Tobias foram mortos por outros

O inferno
Começou com uma maconhazinha na escola. Eu nem sabia. Ele era carinhoso, amoroso. O inferno começou em 2006. Antes Tobias dizia: ‘Eu saí da cocaína, consigo sair do crack’. Ele se enganou. O poder do crack foi maior. Maldito crack. Fizemos essa casa para ele. Tudo perdeu o sentido

Aos pais
Os pais nunca estão sabendo, são os últimos a saber. Mas não podem perder a esperança. Não devem se entregar, considerar a luta perdida. Acho que mimei. Era meu único filho, foi planejado, desejado. Comecei a trabalhar fora e achava que ele estava em boas mãos. Dou esse depoimento porque tantos pais como eu sofrem calados com isso. Falo para não terem vergonha. Eu já tive vergonha do meu filho. Tem de enfrentar, gritar

O alerta
O governo tem de ser mais enérgico. Tem de impedir a entrada dessa droga, fiscalizar. O crack está devastando nossos jovens, uma epidemia. Até os jornalistas aqui se impressionaram. Nossa, crack nessa casa? Crack é coisa de rua, de mendigo. Não, ele está agora em todo lugar. Tobias tinha namorada, filhinha de papai aqui em Porto Alegre que consumia droga

Flávia Costa Hahn
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