Lula foi mudando os adversários à medida que se consolidava no manche. Pouco a pouco, foram desaparecendo da narrativa de Lula e do PT os antes responsáveis pelas desgraças do Brasil.
É preciso reconhecer que os jornalistas e o jornalismo somos chegados a um não me toques. Vivemos a pontificar e a fazer juízos de valor sobre tudo e todos, mas quando o sentido da crítica se inverte acomete-nos um excesso de sensibilidade.
É equivocado acreditar que as críticas à atividade jornalística são por hipótese um atentado à liberdade de expressão. A imprensa não pode pretender estar imune ao sistema de freios e contrapesos na democracia.
As seguidas reclamações do presidente da República contra o jornalismo pátrio devem ser catalogadas no rol das coisas normais, rotineiras, positivas. De toda crítica, mesmo a mais descabida, recolhe-se algo bom.
Há porém um detalhe curioso na atitude de Luiz Inácio Lula da Silva sobre o tema: o discurso presidencial é bipartido, contraditório, antagônico em si mesmo. Uma hora sua excelência regozija-se ao decretar o fim do oligopólio dos “formadores de opinião”. Outra hora se preocupa em protestar contra o tratamento, segundo ele injusto, que recebe dos veículos de comunicação.
Se de fato o jornalismo dito profissional perdeu importância após a explosão planetária das redes que distribuem informação em formato digital, por que razão o presidente da República investe tanto do seu escasso e precioso tempo nesse combate sem tréguas?
Vocação incontrolável para ombudsman? Vontade de contribuir generosamente para o Brasil ter a cada dia uma imprensa melhor?
A explicação talvez esteja em outro ponto. Quando Lula se retirar para São Bernardo alguém deverá fazer a análise das transformações no discurso presidencial na passagem pelo poder. Não se faz política sem adversários, uma forma amena de nomear os inimigos. E Lula foi mudando os adversários à medida que se consolidava no manche.
Pouco a pouco, foram desaparecendo da narrativa de Lula e do PT os antes responsáveis pelas desgraças do Brasil.
Os latifundiários da cana viraram heróis nacionais quando interessou ao governo alavancar em escala planetária o etanol como biocombustível global. Os empresários que arremataram as estatais na era tucana viraram amigos de infância — o que não impede o PT de continuar falando mal da privatizações, ainda que não tenha revertido nenhuma delas.
E os bancos, com seus lucros estrondosos, gordas tarifas, spreads pornográficos? O que antes era defeito virou qualidade. Afinal, um sistema bancário sólido — e põe sólido nisso! — ajudou-nos a sair razoavelmente bem da crise.
Se fosse o caso de completar a lista, o espaço desta coluna seria insuficente. Permanece, é claro, o discurso genérico contra a elite, uma reverência ritual ao passado. Mas a elite em carne e osso passa ao largo das críticas presidenciais, a não ser quando pode se contrapor a algum objetivo do poder.
Os antes “inimigos” do PT são agora fustigados apenas nos horários eleitorais das microssiglas de esquerda, o pessoal que luta para sair do traço nas pesquisas de intenção de voto. Assistir a elas na tevê é quase um exercício de arqueologia.
Que inimigos sobraram para Lula? Os atores políticos que eventualmente possam representar algum obstáculo à consolidação e ampliação do poder. Encaixam-se aí, além de um gordo pedaço da imprensa, instituições como o Ministério Público, o Tribunal de Contas, os órgãos de fiscalização ambiental, o Congresso Nacional (quando resiste a seguir os ditames presidenciais).
Qualquer um que se atreva a questionar, no todo ou em parte, as decisões de sua excelência.
E a imprensa, é santa? Longe disso. Não há santidades nessa rixa. Ainda que cada uma das partes insista em apresentar-se como merecedora da canonização.
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