Em comemoração pelos 20 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - como se houvesse motivos para comemorar a data -, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, encaminhou projeto de lei ao Congresso Nacional propondo a penalização dos castigos físicos dispensados a crianças e adolescentes. O projeto prevê pena de advertência, proteção à família e orientação psicológica para quem usa castigo corporal ou confere tratamento cruel ou degradante à criança ou ao adolescente.
É importante observar que, ao contrário do que a proposta sugere, nossa lei penal há décadas criminaliza o abuso dos meios corretivos e educacionais praticados contra pessoas sob a guarda ou vigilância do agressor (seja ele criança, adolescente, idoso ou incapaz por qualquer outro motivo). É o que prevê o artigo 136 (maus-tratos) do Código Penal, ao estabelecer que é crime apenado com detenção de 2 meses a 1 ano ou multa a conduta de "expor a perigo a vida ou a saúde de pessoas sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina".
Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave, a pena é de 2 a 4 anos e, se resulta morte, é de 4 a 12 anos, em todo caso aumentada em um terço se a vítima for menor de 14 anos.
Se, de um lado, o que permite a comprovação dos maus-tratos é a objetiva constatação das sevícias, a configuração ou não da palmada acabará sendo decidida ao alvitre do intérprete, no ilimitado terreno dos subjetivismos. Sim, pois fazendo um confronto lógico entre as duas figuras, a que existe há décadas no Código Penal (os maus-tratos) e a que consta da proposta do governo de reforma do ECA, a conclusão é de que esta última servirá como figura subsidiária da outra. Ou seja, quando o fato não for grave o suficiente para configurar maus-tratos, será enquadrado na figura mais branda do ECA. É a punição da famosa palmada no bumbum.
Isso quer dizer que os problemas graves de violência doméstica contra a criança continuarão a ocorrer, e quanto a isso não se apresentou nenhuma proposta. Mesmo porque esse, como vários outros, não é um problema que se resolve no fácil terreno da canetada legislativa, mas no árduo e espinhoso alpendre da política pública.
Ao querer ensinar como se educa, o governo prova não conhecer outro meio senão aquele mesmo que ele visa a coibir: o do castigo. Isso não é de estranhar, basta dar uma espiada na forma como o próprio Estado educa as crianças e os adolescentes que vivem sob sua tutela nas casas correcionais (entre as quais a Febem é de triste memória e a Fundação Casa não chega a ser um louvável exemplo presente), ou pior até, aquelas que deveriam estar sob sua tutela, mas não estão. A regra, então, é a da lógica cartesiana. Como há um consenso de que não se deve castigar uma criança com corretivos físicos, a conclusão é uma só: quem assim procede deve ser punido. Nada mais aparentemente óbvio, nada mais equivocado.
Essa é a tática totalitária de resolver problemas pelo caminho do óbvio. Havendo consenso nacional sobre um mal a combater, ao chefe supremo cabe abreviar o caminho que leva ao aniquilamento imediato do problema. Tão simples quanto desastroso. Não é demais lembrar que práticas totalitárias não são privilégio de Estados tirânicos, a tirania só é uma forma não-democrática de escolher os métodos, o que não significa a escolha de métodos piores.
Arvorando-se em Grande Pai da Nação, como que monopolizando para si todo o amor do povo, nosso Leviatã chega ao ponto de querer ser amado ao custo da desintegração familiar. Consegue numa só tacada o amor do filho repreendido e o temor do pai equivocado, atingindo a perfeição maquiavélica (ser amado e temido ao mesmo tempo).
O que diferencia as práticas totalitárias das outras é a completa falta de sensibilidade das primeiras e sua incompreensão sobre a complexidade dos problemas do homem; não há naquelas a sábia percepção de que a política nunca será capaz de resolver todos os problemas da condição humana e que, às vezes, deixar um problema sem resposta é melhor do que dar-lhe uma política equivocada.
Pergunta-se: afinal, o que é mais humilhante ou degradante, a palmada no bumbum numa via pública ou a eterna lembrança de que, por causa disso, sua mãe foi levada a prestar contas à polícia?
Ainda que se argumente com a possibilidade de a própria criança ou o adolescente se ofender com o corretivo dos pais e, por causa disso, denunciá-los às autoridades, é certo que o abuso causado pela exposição da família a vexame é tão ou mais traumatizante do que qualquer tratamento mais rígido dispensado ao menor - desde que, repita-se, não venha a configurar a forma de agressão mais grave, já prevista há décadas como crime de maus-tratos no Código Penal.
De fato, a criança pode ser capaz de esquecer as palmadas de um dia para o outro, mas custará a se livrar do martírio que é ver seus pais respondendo pela acusação que ela mesma deflagrou. O Estado que queremos ainda é aquele do policial que pega um menor desses pelo braço e o devolve aos pais, aconselhando-o a ser uma criança mais obediente.
Como se vê, há também um contingente de perversidade na proposta governamental, que é o de fazer do Estado o Grande Pai, prática muito comum nas máfias e na criminalidade organizada. O Estado passa a usar um instrumento perigoso e fortemente sedutor numa criança de mente ainda bastante vulnerável - o da libertação parental, com a qual toda criança zangada um dia sonhou - para se imiscuir numa relação íntima e privada, e sair dela como o grande e falso herói. É o Estado querendo se apoderar das relações afetivas para se redimir da catastrófica forma como ele próprio vem tratando as nossas crianças. |
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