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segunda-feira, junho 07, 2010
''BEST SELLER''/AUTOAJUDA [In:] A DIFERENÇA ENTRE REMÉDIO E VENENO: A DOSE
Ela perdeu o hífen, a linha... e a noção de ridículo
LUÍS ANTÔNIO GIRON
A autoajuda está morrendo da cura, ou envenenada pela própria peçonha. Tornou-se a mais acabada manifestação do autoengano. Ela perdeu o hífen, a linha... e a noção de ridículo. Como se não bastasse, anda abrindo mão de seus baluartes mais notáveis. Autoajuda, ajude-se! Sim, porque você sofre de baixa autoestima e, ainda por cima, amarga uma fuga de cérebros.
Os fundadores da moda no Brasil já não querem ser chamados de gurus da autoajuda. Ficaram famosos e adquiriram tamanho prestígio que hoje atendem por pedagogos (Içami Tiba), neurolinguistas (Lair Ribeiro), psiquiatras (Augusto Cury, Roberto Shinyashiki), psicógrafos (Zíbia Gasparetto) e até mesmo romancistas (Lya Luft). O anseio pelo reconhecimento acadêmico e intelectual dos antigos pregadores abriu espaço para entrada em campo da segunda divisão do gênero, seguida pela terceira, a quarta e agora quinta. A autoajuda ainda vende, sobretudo junto ao público que tem aspirações à ascensão social – e é compreensível que isso aconteça com o ingresso das classes C e D ao universo acadêmico. Mas esse gênero literário já não possui o volume de consumo nem o glamour de antigamente, quando virar palestrante de empresa e vender livros na saída enriquecia professores universitários em fim de carreira e hordas de picaretas que podiam mentir até nos currículos.
Atualmente, a pegada da autoajuda se infiltrou em outras faixas literárias. Na ficção, a série Crepúsculo e os romances de Dan Brown são bons exemplos. Nos infantis e infantojuvenis, nem se fala: as crianças estão sendo tratadas como compradores de ideias ascensionais. As igrejas pentecostais formam pastores, apóstolos, bispos e bispas nutridos nos manuais de autoajuda – sopa no mel para a leitura da Bíblia, um texto poético e polissêmico que se presta a múltiplas interpretações. Os cabalistas, os escolásticos e os marxistas que o digam. Nesse sentido, até nos tratados filosóficos mais moderninhos a gente percebe a influência do estilo autoajuda. Os novos pensadores franceses, como Michel Onfray e André Comte-Sponville, preconizam doutrinas éticas aplicáveis a um mundo excessivamente relativista e, para convencer seu público, lançam mão da retórica da autoajuda. Não vendem livros, mas alimentam a universidade com seus textos de leitura digestiva.
Ainda restam nas derradeiras livrarias do mundo as estantes dedicadas à autoajuda. E é preciso enchê-las. Mesmo as listas de livros mais vendidos reservam um espaço a ela, em vez de alocá-la em não-ficção. Por quê? Porque justamente autoajuda não é nem ficção nem não-ficção. Pertence ao campo da doutrina, da metafísica para dummies. Abriga fábulas, apólogos, poemas, homilias e prédicas. Tudo para que o consumidor se sinta recompensado.
Por ausência de talentos, os editores têm buscado sabedoria fácil nas fontes mais abstrusas. Há três anos, até animais de estimação foram chamados a participar do espetáculo. E gatos e cães foram vendidos em volumes como se fossem herdeiros de Aristóteles e Maimônides. Não só isso: como se tivessem obtido pós-doutorado em Harvard e Oxford. Todos eles tinham “lições de vida” e “exemplos de simplicidade” a dar a nós, seres ambiciosos, apressados e consumistas. Na verdade, os bichos eram desculpas para seus donos destilar suas tolices. Os cães filósofos resultaram até em uma reportagem que redigi para Época. Achei graça e adorei escrever o texto porque ali estava a prova de que autoajuda não tinha mais cura e poderia sair de cena com o rabo entre as pernas. Não foi bem assim. Desde então, outros seres e personalidades foram chamadas a ajudar no mutirão de solidariedade à sustentação das chamadas “pílulas de sabedoria”. Agora estão na moda outros seres. Os cães foram substituídos pelos lobos. E uivaram à chegada dos vampiros, dos heróis homéricos, dos roqueiros e... dos espíritos. Todos com lições de vida a dar a você, estimado leitor.
Eu detesto livros que me ajudam a qualquer coisa ou se vendam por causa de suas supostas lições. Nunca fui bom em trabalhos manuais e de buscar redenção para minha consciência em literatura de cabeleireiro. Mas não sou parâmetro, eu sei. Mesmo assim, vou mencionar quatro títulos recém-lançados do modo mais neutro possível. Ouça os títulos e subtítulos. O primeiro é o mais pretensamente sério e se chama O filósofo e o Lobo – lições da natureza sobre amor, morte e felicidade (Objetiva, 214 páginas), de Mark Rowlands. No alto da capa, uma citação do Times Literary Supplement [e eu que assino esse periódico]: “Emociona, provoca e envolve o leitor: afirma vida”. Rowlands promete abençoar você com conselhos que valem mais que os R$ 50 do volume: “Às vezes é necessário deixar que o lobo dentro de nós se manifeste; silenciar a tagarelice incessante do primata. Este livro é uma tentativa de falar pelo lobo do único modo possível”. Ou seja: pela autobiografia do autor e de seu encontro com o lobo Brenin. Rowland trabalhou nisso por 15 anos. Tudo para escrever no final uma declaração de amor ao animal: “Espero que você não esteja se sentindo muito só. Sinto sua falta e sinto falta de ver seu fantasma de pedra todas as manhãs. Mas, se os deuses permitirem, nossa matilha brevemente estará de volta, para a aproveitar o interminável verão do Languedoc. Até lá, durma bem, meu irmão lobo. Vamos nos reencontrar em sonhos”. Sim, o autor levou 15 anos para encerrar sua obra com essa banalidade assustadora. A lição é de amor, e isso basta para nós, não é mesmo, leitor?
Pulemos para Norman Fischer, que se apresenta como “fundador do Centro Zen de São Francisco”. Ele vive em Miami e vive de dar palestras sobre criatividade e “temas inter-religiosos, meditação e resolução de conflitos”. Seu livro, De volta para Casa (Rocco,272 páginas, R$ 38) traz o seguinte subtítulo, que parece menos inútil que o do lobo: “Usando a sabedoria da Odisseia de Homero para navegar pelas ciladas e armadilhas da vida”. Bom, já de início, o autor faz aquela preleção budista, diz para esvaziar a mente e esquecer tudo, e assim recomeçar. Onde entra Ulisses? Ele demora a explicar. “Agora, desligue-se desse momento e comece a contar, para você mesmo a história de sua vida. [obviamente não vou fazer isso!] Mas não conte resumidamente, com uma distância dos fatos, onde era a sua escola, o que você fazia, com quem você se casou, datas de nascimento de seus filhos e assim por diante. [ele pensa que vou fazer isso mesmo? Poupe-me, Norman!] Represente seu caminho de vida indo de um desses momentos para o seguinte, escolhendo alguns poucos momentos da infância, alguns da adolescência [São Gautama me ajude!], alguns da juventude e mais adiante. Gaste tempo fazendo isso.” A ideia do autor é tornar oca a consciência, imaginar-se distante do lar. E aqui entra Ulisses. “Para regressar ao lar é preciso que nos joguemos no mar, assim como Ulisses, e nos rendamos a seus poderes e seus deuses. A jornada rumo ao lar não pode ser predeterminada. Não podemos sempre avaliar as tempestades causadas pelas mudanças das marés ou as calmarias do mar. Mas devemos zarpar em frente”. Vão, amigos, zarpem e me deixem aqui no Planalto de Piratininga com minha concepção de vida ranzinza.
Enquanto vocês singram os mares em busca da paz e da anulação absolutas, salto para outra obra. Se um herói grego não ajuda, quem sabe um roqueiro? O que Keith Richards faria em seu lugar – lições de um sobrevivente do rock’n’roll (Fontanar, 264 páginas, R$ 37,90), da jornalista Jessica Pallingon West. Ela jura que a banda The Rolling Stones virou uma “verdadeira religião” para ele, cujo profeta é Keith Richards – ele próprio, o guitarrista e o músico mais doidão dos Stones. Ela desfia os 26 mandamentos do “keithismo”, escrituras de um santo que sobreviveu a todas as adversidades, inclusive a glória, o reconhecimento mundial e a fortuna. Sim, um sofredor como Keith pode salvar sua vida. Diz o quarto mandamento: “Aceita os Rolling Stones como seu senhor metafórico”. Porque você pode reconhecer o Stone que há dentro de você. Você é essencial para a criação e a continuação de você mesmo. Afinal, “os Stones sempre devem procurar os Stones que estão dentro deles”, ensina Keih. Você não pode ser exceção. Ouça a voz da sabedoria: “Nunca passei mal no banheiro de ninguém. Considero isso o ápice da falta de educação”. Ele dá conselhos sobre tudo: carreira, dinheiro, mulheres, a firma, a essência do Mal, que para ele é o queijo: “Queijo é algo muito errado”, disse certa vez. E lá vem o messias Keith com uma visão sobre a vida após a morte: “Nunca recebi um cartão postal de alguém que se foi. Talvez não vendam selos lá em cima.” Você sairá da leitura iluminado pelo cinismo e um bom repertório de palavrões. Vamos ver no que dá. Tente primeiro e talvez eu o siga, querido leitor.
E, por fim, o quarto livro da série: aquele que cruzou a última fronteira para trazer de lá conselheiros de peso, ou sem peso. Trata-se de Assuntos pendentes - como os espíritos podem nos ajudar a viver melhor e superar medos, culpas e arrependimentos (Sextante, 258 páginas), do médium e produtor de TV James Van Praagh. Segundo a Newsweek, Praagh é uma versão americana de Chico Xavier, pois “mudou a vida de inúmeras pessoas, banindo o medo da morte e trouxe a pais desesperados o conforto da presença de seus filhos mortos... É impossível não se emocionar”. Praagh nos garante que está tudo bem, especialmente se você morrer. A “jornada mágica” da vida pode acabar, mas você não deve se preocupar. Pode ser que você que é mais burrinho ganhe até inteligência: “Assim que a alma chega a um plano mais elevado de existência, sua habilidade mental se torna muito ágil, e ela passa a ter imediato e total conhecimento dos que ficaram para trás. O espírito constata que sempre foi espírito, mas que teve experiências físicas enquanto estava na Terra. Ele não sofre como nós. Não existe mais dor após a morte”. Então está ótimo! Já que não há obstáculos, podemos saltitar felizes em direção ao Hades, onde nos espera um sorridente barqueiro. No capítulo final da obra, Praagh descreve uma sessão espírita em que uma família que morreu em um incêndio aparece e diz que não morreu de verdade, estão todos alegres no outro plano. Do lado de cá, além das duas filhas que sobreviveram, o cachorro Lucky, mascote da família dizimada, começa a latir. A mãe fantasma explica que Lucky as salvou, “porque vocês duas têm muito a realizar, especialmente ajudar e ajudar os que necessitam de apoio. Estamos mais vivos do que vocês!” Quando o fantasma parou de falar, Lucky latiu de novo. É como se Lucky dissesse: “Quando você for fiel a si mesmo e viver cada diz segundo a sua verdade, você encontrará a sua liberdade”.
Eis uma imagem perfeita para o estado atual da autoajuda: no fim dos fins, quando os mortos são evocados para salvar a situação in extremis, quem vem resolver a questão é novamente o cachorro. Esse gênero de literatura anda precisando de terapia urgente. Ou virar literatura fantástica de uma vez por todas.
(Luís Antônio Giron escreve às terças-feiras)
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