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FLORES, FLORES PARA LOS MUERTOS
18/06/2005
Folha de São Paulo
Sempre que os fatos ganham
velocidade, costumo comprar um bloco de notas. Anoto frases, idéias, intuições
e deixo que se decantem com o tempo. Volto a elas, depois, para rejeitá-las ou
desenvolvê-las. A primeira frase que me veio à cabeça foi a da vendedora de
flores que encerra um filme.
O pequeno bloco
também tem idéias. Por exemplo: comparar
a ditadura com o governo Lula. Uma neutralizou o Congresso pelo medo; o outro,
pelo pagamento de mesada. Ditadura e governo Lula compartilham o mesmo
desprezo pela democracia, ambos violentaram a democracia reduzindo o
Parlamento a uma ruína moral.
Os militares prepararam sua saída de forma organizada. Nem muito
devagar, para não parecer provocação, nem muito rápido, para não parecer que
estavam com medo. Já o núcleo duro do governo Lula parece perdido, batendo
cabeça, ou melhor, enfiando-a na areia, sem perceber que a polícia está
chegando e, daqui a pouco, alguém vai gritar na porta do Planalto: “Se entrega,
Corisco”.
Quando era menino e vivia em Juiz de Fora, fazíamos rodas de
capoeira, bastante rudimentares, confesso. Mas cantávamos: “A polícia vem, que
vem brava / quem não tem canoa, cai n’água”.
Tudo isso jorra aos
borbotões na minha caderneta. Anotei:
chamar alguém do “Guinness”, o livro dos recordes, para saber se algum
tesoureiro de qualquer partido do mundo se desloca com batedores de motocicleta
e carros clones para iludir perseguidores; se algum tesoureiro partidário
se desloca com jatos particulares, semanalmente; se algum tesoureiro introduz,
no Palácio, associações de empreiteiros que receberam R$ 1,1 bilhão de
dívidas.
Os militares batiam, davam
choques e insultavam na sessão de tortura, mas vi muitos dizendo que me
respeitavam porque deixei um bom emprego para combatê-los com risco de vida.
Eles viam ideais no meu corpo arrasado pelo tiro e pela cadeia.
O PT queria que eu abrisse
mão exatamente da minha alma, e me tornasse um deputado obediente, votando tudo
o que o Professor Luizinho nos mandava votar. Os militares jamais pediriam isso. Desde o princípio, disseram que eu era irrecuperável e se
limitaram à tortura de rotina.
Jamais imaginei
que seria grato aos torturadores por não me pedirem a alma. Não sabia que dias
tão cinzentos ainda viriam pelafrente. Que seria liderado por um homem que
achava que Maurício de Nassau era um deputado de Pernambuco. Logo eu, que sou
admirador de um deputado pernambucano chamado Joaquim Nabuco.
Foram os anos mais duros de minha vida. No meu caderno, anoto
frases e indicações das semelhanças da luta contra a ditadura e da luta contra
este governo, desde que comecei a criticá-lo, com a importação de pneus
usados. As pessoas têm suas carreiras, seus empregos, sua racionalizações. É
preciso respeitá-las, atravessar o deserto sem ressentimentos.
Agora, sobretudo, é preciso respeitar o sofrimento dos vencidos. Outro dia, quando me referi a um núcleo na
Casa Civil como um bando de ladrões que atentava contra a democracia, uma jovem
deputada do PT estremeceu. Senti que não estava ainda preparada para essas
palavras cruas. E fui percebendo pelas anotações que, talvez, esteja aí,
para o escritor, o mais rico manancial de toda essa crise. Como estão as
pessoas do PT? Como se ajustam a essa nova realidade? Que destino tomaram na
vida?
Procuro não confundir,
entre os que ainda defendem o Governo, aqueles que são cínicos cúmplices e os
outros, que apenas obedeceram a ordens sob a forma da aplicação do centralismo
democrático. Alguns defendem porque ainda não conseguiram negociar com sua
própria dor. Não podem suportá-la de frente. Mas terão de fazer algum dia,
porque, por mais ingênuos que sejam, já perceberam que a mãe está no telhado.
Vamos ter de encarar juntos essa realidade. A grande experiência
eleitoral da esquerda latino-americana, admirada por uma Europa desiludida com
Cuba e Nicarágua, a grande novidade que verteu tintas, atraiu sábios, produziu
livros e seminários, vai acabar na delegacia como um triste fato policial de
roubo do dinheiro público e suborno de parlamentares.
Só os que se
arriscarem a ir até o fundo dessa abjeção, compreendê-la em todos os seus
detalhes mórbidos, têm chances de submergir para continuar o processo
histórico. Por incrível que pareça, o Brasil continua, e a vontade de mudar é
mais urgente do que em 2002. Por isso, proponho agora um curto e eficaz
trabalho de luto.
Anotação final: começa o
espetáculo da CPI, secretárias e suas agendas, ex-mulheres e suas mágoas,
arapongas, tesoureiros e seus charutos, Vossa Excelência para cá, Vossa
Excelência para lá, sigilos bancários, telefônicos, emocionais. Viu, Duda,
que cenas finais melancólicas quando um mercador tenta aplicar à complexidade
da política a singeleza do vendedor de sabonetes?
ISBN: 85-254-1610-X
G112n
Gabeira, Fernando Paulo Nagle, 1941-
Navegação na neblina / Fernando Paulo Nagle Gabeira. -
Porto Alegre : L&PM, 2006.
120 p. ; 21
cm.
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