O Supremo Tribunal Federal (STF) começa a julgar, na quinta-feira, um dos casos de maior repercussão que já passou pela Corte - e certamente o mais complexo processo de sua história, com 38 réus. O julgamento da denúncia do Ministério Público Federal contra os envolvidos no esquema que ficou conhecido como mensalão mobilizará a Corte por pelo menos um mês e exigirá diversas sessões de julgamento.
O caso tem enormes repercussões políticas, mas seus efeitos jurídicos são igualmente importantes. Estão em jogo, além do próprio formato de um julgamento desse porte, a forma como as instituições brasileiras lidam com a corrupção, a efetividade das leis penais hoje em vigor e a jurisprudência da mais alta Corte do país. Basta lembrar que a própria aceitação da denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal em 2006 pelos ministros do Supremo representou uma alteração na orientação histórica da Corte. Até então, processos em que alguns réus detinham foro privilegiado e outros não eram desmembrados, passando a tramitar no Supremo apenas as acusações contra os que detinham prerrogativa de função, como ministros de Estado e parlamentares. As demais eram remetidas às instâncias inferiores. A questão será novamente enfrentada a partir da quinta-feira, quando pelo menos um dos advogados - o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos - deverá pedir o desmembramento da ação.
A mudança no entendimento do Supremo é, na opinião do professor Renato de Mello Jorge Silveira, apenas uma das questões que devem emergir do caso do mensalão. Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e chefe do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da São Francisco, Silveira acredita que haverá uma profunda revisão em diversas questões relacionadas às instituições e ao direito penal, especialmente aos casos de crimes do colarinho branco no Brasil.
Para acompanhar o julgamento do mensalão - a Ação Penal nº 470 - a partir desta semana, o Valor fechou parceria com o Instituto Manoel Pedro Pimentel de Estudos Penais e Criminológicos (IMPP), do Departamento de Direito Penal da faculdade, cujos professores contribuirão com suas análises para a cobertura diária. A seguir, os principais trechos da entrevista com o professor Renato Silveira concedida ao Valor:
É um pouco perturbadora a facilidade da mudança de orientação do Supremo, mas ao mesmo tempo compreensível"
Valor: O que significa o julgamento do mensalão para a jurisprudência e credibilidade do Supremo?
Renato de Mello Jorge Silveira : O Supremo, a cúpula do Poder Judiciário do Brasil, tem, por óbvio, um aspecto político até derivado de suas indicações. Mas historicamente é um tribunal técnico, até apartado das discussões e influências da opinião pública. O desafio, neste que vai ser o maior julgamento originário que o Supremo já teve, é saber se ele vai conseguir manter-se distante das influências que não estão estritamente no processo. Eu tenho profundas esperanças que sim, a composição do Supremo leva a crer que sim.
Valor: O sr. acha que no julgamento da Lei da Ficha Limpa o Supremo deu um sinal de que parece ter atendido aos anseios da opinião pública e que, no mensalão, pode seguir o mesmo caminho?
Silveira : São duas coisas diferentes. O julgamento da Lei da Ficha Limpa se deu em um ambiente eleitoral. O universo eleitoral teria outras características que não necessariamente o universo penal. Quando mencionamos que estamos trabalhando com uma visão criminal, com o destino da liberdade pessoal do indivíduo, parece-me que deveriam ser afastadas quaisquer influências políticas. É claro que, subjetivamente, o magistrado tem tendências para um lado ou outro, mas ele se finca necessariamente no processo, pois tem que fundamentar sua decisão com base no que existe nele.
Valor: Quer dizer então que o anseio da população por uma condenação por corrupção não seria um peso na decisão dos ministros?
Silveira : Não conheço os autos do processo em detalhes. Parece-me que existem influências, mas na sua fundamentação, há de haver um lastro técnico. É preciso dizer de que forma a decisão é posta, porquê uma absolvição ou condenação deve se dar. Pode existir um grau de subjetivismo do magistrado? Pode, mas isso tem que ser no mínimo equilibrado com o que é posto nos autos. No direito costuma-se dizer que o que não está nos autos não está no mundo.
Valor: O Supremo foi muito criticado na época do julgamento do ex-presidente Fernando Collor de Mello, quando o absolveu da acusação de corrupção decorrente do impeachment por falta de provas. O sr. vê similaridades entre os dois casos?
Silveira : Veja, não ocorreu apenas no caso Collor, políticos envolvidos no caso dos chamados anões do orçamento, por exemplo, também foram condenados politicamente, mas acabaram sendo absolvidos. O julgamento político pelos pares, nas câmaras parlamentares, não precisa ou não se basta com provas. Posso ter questões absolutamente subjetivas. O julgamento criminal não, talvez por isso que até cause um pouco de incômodo e decepção na opinião pública seu resultado final.
Valor: E o Supremo já tem essa fama de não condenar políticos...
Silveira : Na verdade, veja que curioso, se fala que o Supremo não condena políticos. Mas eu queria lembrar que, até a promulgação da Emenda Constitucional nº 35, de 20 de dezembro de 2001, o Supremo não tinha liberalidade de processar políticos, era preciso autorização do Congresso Nacional. É um pouco falaciosa a ideia de que o Supremo não condena ninguém. O Supremo não podia sequer processar. A partir de 2002, ganha uma certa autonomia para tanto. Então estamos falando de dez anos, não é tanto tempo assim. Veja só a dificuldade de instrução do próprio processo do mensalão. Nós levamos seis anos para isso.
Valor: Quais são as características desse processo que o diferenciam de outros, em termos de peculiaridades processuais?
Silveira : Quando temos um caso de grande repercussão, se diz que tal situação vai ser o julgamento do século. No caso brasileiro é a primeira vez que a mais alta Corte do país tem um processo originário dessas proporções, com esses envolvimentos políticos, econômicos etc., que mais ou menos paralisam o país. Nesse aspecto me parece que a importância do julgamento é tremenda, porque o próprio Supremo, a própria instituição do Poder Judiciário vai ser posta em xeque, vai ser objeto de debate na opinião pública, na academia, em todos os cantos. Acho que a partir desse julgamento, qualquer que seja o resultado dele, muitas reflexões sobre a própria estrutura do Poder Judiciário vão ser questionadas ou revisitadas.
Podem haver recursos incidentais, então a questão não se acaba quando o último ministro der seu voto"
Valor: A ministra Eliana Calmon, corregedora nacional da Justiça, disse na semana passada que o Supremo vai passar pelo crivo da população com esse julgamento. Sua credibilidade está em jogo?
Silveira : Tenho um pouco de dúvidas acerca disso, tendo em vista inúmeros casos que parecem mobilizar a população, mas que, no momento da emoção, ela tinha uma visão um pouco errada. Qualquer que seja a decisão, vai se discutir profundamente uma série de estruturas do Poder Judiciário. É correto, por exemplo, ocorrer esse tipo de julgamento? Por que nunca se questionou o foro por prerrogativa de função, como está se questionando agora? Na verdade porque tenho um julgamento com uma dimensão monstruosa.
Valor: Por que esse caso ganhou tamanho apelo na opinião pública?
Silveira : O direito penal econômico ganhou, de tempos para cá, uma dimensão absolutamente grande. Qual é o sentimento da população? O de que, finalmente, nesses crimes é possível punir aqueles membros de uma camada mais elevada da sociedade. Se formos analisar nosso Código Penal, grande parte dele diz respeito aos crimes patrimoniais, que foram pensados em uma sociedade burguesa na qual quem praticava esses crimes patrimoniais era uma camada menos abastarda e contra quem detinha o capital. Quando, a partir de meados do século 20, se começa a trabalhar com os crimes econômicos, vejo uma mudança. Não trabalho mais com a base da pirâmide social, mas com a criminalidade dos poderosos. Talvez isso possa explicar um pouco o sentimento atual da opinião pública: quero ver os agentes corruptores do Estado punidos. Esse sentimento muitas vezes contrasta com o próprio dinamismo do Judiciário. É difícil se falar da comprovação de muitos dos novos crimes como se fossem crimes de furto ou roubo, há uma minúcia técnica muito diferente e isso precisa ser revista.
Valor: O Supremo, no caso do mensalão, alterou sua jurisprudência ao aceitar a denúncia do Ministério Público e não desmembrar o processo, que tem apenas 2 réus com foro privilegiado. O que isso significa em termos jurídicos?
Silveira : Essa é uma questão interessante. Quando nós falamos que o Supremo mudou sua jurisprudência, temos que lembrar também que mudou a composição do tribunal. É claro que, até por uma questão de segurança jurídica, seria de se esperar uma maior estabilidade das decisões anteriores. Mas em uma Corte com 11 ministros, a alteração de um ou dois membros já pode mudar significativamente determinada orientação jurisprudencial. Veja-se toda a dificuldade de aprovação da Lei da Ficha Limpa. É um pouco perturbadora a facilidade da mudança de orientação, em um senso de segurança jurídica, mas ao mesmo tempo é compreensível, dada a substituição de membros da Corte que nós tivemos nos últimos anos.
Valor: O sr. acha que o processo do mensalão vai impactar no debate sobre a corrupção no Brasil?
Silveira : Me parece que o tema vai ser revisitado. Não sei se faltam leis sobre o tema no Brasil, o que me parece é que existe uma dificuldade de aplicação de leis e uma tolerância com a corrupção que, felizmente, está em modificação.
Valor: Muito do que se tem se falado do mensalão são mitos, de que os réus condenados sairiam presos, por exemplo. De tudo o que se tem falado, o que não vai acontecer?
Silveira : O que deve ocorrer é um julgamento mais alongado do que se pode encontrar corriqueiramente. E, ainda que seja um julgamento na mais alta Corte do país, podem haver recursos incidentais, como embargos de declaração para o esclarecimento de alguma obscuridade de algum dos votos. A partir disso podem haver outros recursos incidentais. Então a questão não se acaba quando o último ministro der seu voto.
Valor: Ainda que existam recursos, é difícil que o resultado final do julgamento seja alterado?
Silveira : Pode ocorrer, mas é difícil. E vamos ter mudanças de julgadores ao longo do semestre, que vão apreciar esses recursos. A grande discussão, e a beleza do julgamento do ponto de vista jurídico, vai estar no esgrimir de ideias.
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