Bolsa Família: repasse alto não elimina miséria
Famílias com muitos filhos e consideradas miseráveis recebem do Bolsa Família benefícios muito acima da média do programa. O repasse mais alto é de R$ 1.262. Transferências elevadas, contudo, não bastam para transformar condições precárias de vida. Faltam empregos.
Benefícios de mais de R$ 1 mil
acima da média Programas sociais sustentam famílias numerosas com repasses de até R$ 1.262
André coelho
CAMPO FORMOSO (BA).
Famílias numerosas e classificadas como miseráveis ganham benefícios muito acima da média do Bolsa Família. Isso ocorre desde o ano passado, quando o governo lançou o programa Brasil Carinhoso - uma complementação para garantir renda superior a R$ 70 mensais por pessoa, que é a linha oficial de pobreza extrema. Conforme o GLOBO revelou em junho, inicialmente, o repasse mais alto era de R$ 1.332 por mês. Atualmente, é de R$ 1.262, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Em Campo Formoso, na Bahia, há beneficiários recebendo R$ 842 e até R$ 994, o que corresponde a quase um salário mínimo e meio. Embora ninguém passe fome, transferências elevadas nem sempre bastam para reverter condições miseráveis de vida.
Aos 36 anos, Helenice Alexandrino dos Santos é mãe de dez filhos. A caçula tem 4 anos e o mais velho, 18. Ela, o marido e o filhos - um total de 12 pessoas - moram numa casa sem banheiro.
- É no mato - esclarece.
Helenice dos Santos vive no povoado Casa Nova dos Ferreiras, nos arredores do remanescente quilombo Lages dos Negros, a 85 quilômetros da sede de Campo Formoso (60 deles em estrada de terra).
A família começou a construir um banheiro no quintal dos fundos, mas parou por falta de dinheiro. Neste ano, porém, a casa de Helenice foi selecionada pelo governo da Bahia para ganhar um sanitário. Das 50 moradias do povoado, 14 teriam sido contempladas, segundo ela.
Quando o GLOBO esteve na residência da família de Helenice, há duas semanas, três operários trabalhavam no local - as paredes de tijolos já tinham sido erguidas e os pedreiros aguardavam a chegada do vaso sanitário, da pia e do chuveiro. Os filhos de Helenice cavaram duas fossas.
O benefício de R$ 842 mensais supera em mais de cinco vezes o valor médio de R$ 149,70 repassado pelo Bolsa Família no país. Helenice, contudo, diz que é pouco:
- É só isso que eu tenho para comer, vestir, calçar, comprar caderno, lápis e remédio. Tinha que ter aumento.
Como não há sequer loteria no povoado, os beneficiários do Bolsa Família precisam ir até Campo Formoso. A passagem de ida e volta custa R$ 20 e o ônibus sai por volta das 3h. Os gastos com transporte, café da manhã e almoço na cidade constituem uma espécie de "pedágio" para buscar o benefício.
Emprego é carência na região
Ao contrário da área urbana de Campo Formoso, a região do quilombo continua castigada pela seca, que já dura dois anos. As plantações de mandioca, feijão e milho não prosperam. E mesmo as de sisal, planta resistente à seca e base da economia local, cuja fibra é vendida à indústria têxtil, estavam murchando.
Com poucos empregos no comércio, nas escolas e no serviço público, a saída para quem vive em Lages dos Negros, segundo Helenice, é buscar trabalho fora. Ela conta que o marido, Geraldo Ferreira dos Santos, de 40 anos, chegou a passar cinco meses em um garimpo, mas voltou de mãos vazias.
- Meu marido não pode pegar trabalho pesado porque fica quase sem poder andar. É por isso que não vai para fora. Antes chovia e a gente não precisava comprar feijão nem farinha - diz Helenice.
Ano passado, Geraldo recebeu cinco parcelas de R$ 135 do garantia-safra, uma ajuda do governo federal para enfrentar a seca. Indagado sobre o que falta na região, ele responde:
- Emprego.
Até quatro anos atrás, era preciso buscar água em uma fonte fora de casa, usando latas para transportá-la. Hoje, a residência tem água encanada, embora não possua torneiras: um único cano deságua num tanque de alvenaria no quintal. Na maior parte do tempo, não sai nada dele, que é abastecido por um poço artesiano.
A filha Edna Ferreira dos Santos, de 16 anos, está no 1º ano do ensino médio. Ela tem um pôster do jogador Neymar na parede do quarto e sonha cursar faculdade de Letras. Adora poesia e já escreveu mais de 300 em cadernos que guarda numa sacola plástica. "Já sei por que incomodo, é a minha cor. (...) Sou negra batalhadora. E luto pela verdade", escreveu Edna.
Benefício sustenta família com 18 filhos
Em Tiquara, povoado na zona rural a 35 quilômetros da sede urbana de Campo Formoso, o casal de lavradores José Gessimo da Silva e Maria Lúcia tem 18 filhos, dos quais 15 moram com eles, sendo que duas filhas só nos fins de semana. Eles recebem R$ 994 do Bolsa Família.
- Era para ser 20 - diz Maria Lúcia, de 45 anos, contando que sofreu dois abortos naturais.
Sem interromper a entrevista, ela começa a amamentar a caçula Melissa Vitória, de 2 anos, que está em seu colo. O primogênito, Márcio, tem 26 e já saiu de casa - trabalha como operador de máquinas na mina de cromo da cidade.
José Gessimo tem 53 anos e é o titular do cartão do Bolsa Família. Ele tem uma moto, comprada por R$ 4 mil, e uma caminhonete fabricada em 1975, movida a gás, que custou R$ 6,5 mil. José Gessimo diz que adquiriu os veículos com dinheiro que ganhou do pai, um pequeno proprietário rural de 89 anos que vendeu parte das terras para uma fábrica de cimento da região.
José Gessimo tem uma plantação de sisal nas terras do pai, com quem divide a produção. Ganha cerca de R$ 80 por semana. O filho Josiel, de 18 anos, ajuda no serviço e recebe, em média, R$ 50. Maria Lúcia diz que também trabalhava no sisal, mas parou há dois anos por causa da dor nas costas. Atualmente, ela ganha R$ 10 por semana para varrer um ônibus de linha que fica estacionado na frente de sua casa. Devido à seca, a família também recebe o seguro-safra.
A casa, originalmente, tinha três quatros. Hoje, são cinco. A reforma incluiu a ampliação da cozinha e a construção de um banheiro - uma casinha nos fundos do quintal foi desativada.
A filha Eliana, de 18 anos, está no 3º ano do ensino médio. Ela ajuda a mãe a tomar conta dos irmãos e sonha em ser policial militar "para prender os bandidos".
A caixa d"água em cima do banheiro é abastecida manualmente: um filho fica no topo de uma escada, enquanto outros enchem baldes num tanque entregando-os a ele. José Gessimo usa a caminhonete para buscar água numa fonte a cerca de 5 quilômetros da casa. É com ela que tomam banho, dão descarga no vaso sanitário e lavam a moto. A água para beber e cozinhar vem de uma cisterna construída pelo governo federal e abastecida, mensalmente, por um carro-pipa do Exército.
- O sisal não é fixo, é por produção. As pessoas que vivem no Sul não sabem as dificuldades do Nordeste: o clima, o tempo, a falta de chuva. A gente planta, mas é tudo perdido. Os programas do governo são a nossa sorte - diz José Gessimo.
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