Lições do mensalão
:: Thiago Bottino
Doutor em direito constitucional pela PUC-Rio, é coordenador da graduação da FGV Direito Rio
O julgamento do mensalão ainda não terminou, mas independentemente do resultado final de penas, condenações e absolvições, é possível apontar importantes transformações no país. A primeira delas é a certeza de que nossas instituições funcionam. Somos uma democracia jovem, cuja Constituição tem 24 anos de idade. Nosso país vinha de uma ditadura de 25 anos na qual as liberdades civis e políticas foram duramente suprimidas. Construir práticas democráticas e republicanas não é tarefa rápida. No entanto, temos motivos para nos orgulharmos.
A imprensa funciona. Teve ampla liberdade e foi capaz de cumprir a importante função de noticiar fatos à população e fiscalizar o funcionamento do Estado. Foi graças às entrevistas publicadas em grandes veículos que se iniciaram as investigações que culminaram no processo. Não houve nenhuma espécie de retaliação do governo aos veículos ou grupos de mídia que participaram do processo.
O julgamento mostrou o quanto a mídia é capaz de influenciar julgamentos. O livro Mensalão – diário de um julgamento, organizado pelo diretor da FGV Direito Rio, Joaquim Falcão, permite acompanhar a cronologia das notícias e das intervenções da sociedade e da mídia no debate que se travava no STF. Os ministros do Supremo responderam, durante o julgamento, a argumentos apresentados em artigos de jornal e entrevistas de televisão. A relação entre mídia e Justiça pode ser boa ou ruim, necessária ou perniciosa, republicana ou parcial, conforme o olhar que se lance. Mas é realidade inexorável e precisaremos aprender a lidar com ela. O julgamento do mensalão pode nos ajudar a aperfeiçoar essa relação.
As instituições públicas também funcionaram: a Polícia Federal foi capaz de realizar trabalho técnico e independente, mesmo ligada ao governo que investigava. O Ministério Público não hesitou em investigar pessoas de importância no governo e no Congresso, mesmo com um procurador-geral nomeado diretamente pelo presidente da República.
O Supremo foi capaz de conduzir instrução processual extremamente difícil (muitos réus, testemunhas e documentos) e adaptar a rotina de julgamentos para que um caso dessa importância recebesse a atenção devida que um julgamento criminal precisa ter. Os advogados foram capazes de se contrapor ao discurso leviano da punição generalizada. Protegeram as garantias individuais de todos nós e fiscalizaram a atuação dos ministros, evitando condenações indevidas. Dos 37 acusados, quase um terço foi absolvido.
A segunda lição que aprendemos é que o Supremo não deve mais julgar casos como esse. Nossa mais alta Corte ficou completamente imobilizada por meses, prejudicando o julgamento de questões extremamente importantes. A rotina intensa é bem retratada no livro referido a partir da análise de cada sessão de julgamento.
Os ministros foram levados à exaustão e as sessões intermináveis sobre o mesmo caso desgastaram as relações entre eles. Além disso, por serem homens, não deuses, nossos ministros erram. Sobretudo quando examinam um caso como se fossem juízes de primeiro grau. E, quando um ministro do Supremo erra, não há quem possa corrigi-lo. Isso não é bom para o Estado de Direito nem para o devido processo legal. É preciso modificar a regra do foro privilegiado e dar mais valor à possibilidade de que haja ao menos um recurso para tribunal diferente.
A terceira lição é a de que o Estado de Direito só é compatível com uma democracia ética. Não com uma democracia de resultados. Se havia representantes do povo dispostos a mudar suas posições políticas em troca de vantagens indevidas, a democracia estava em risco. Nesse cenário de um Legislativo fraco e volátil, a governabilidade não pode ser buscada a qualquer preço. Não admira que haja mensalão petista, mensalão tucano, mensalão do DEM... Não importa.
Nenhum meio ilícito deve ser aceito, mesmo que os fins sejam justos. Ao registrar o julgamento do Supremo vis-à-vis com as notícias e artigos publicados na mídia, o livro organizado por Falcão se constitui documento histórico diferenciado, construído a partir de múltiplas visões sobre o mesmo caso — todas preocupadas em aperfeiçoar nosso Estado Democrático de Direito.
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