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sexta-feira, dezembro 07, 2012
MENSALÃO, AÇÃO PENAL 470 e CABEÇA DE JUÍZ
A essência do direito na Ação Penal 470
Autor(es): Alamiro Velludo Salvador Netto |
Valor Econômico - 07/12/2012 |
Após longos meses acompanhando o julgamento da Ação Penal nº 470, é chegada a hora de um balanço final. Como jamais visto, a mídia repercutiu o ritual judicial em todas as suas minúcias, lançando mão de consagrados cronistas, repórteres vários e diuturnos, analistas políticos, profissionais e acadêmicos do direito. Críticas e elogios sucederam-se, manchetes ufanistas foram produzidas, um Brasil mais justo e igualitário foi profetizado, ministros foram postos em extremos maniqueístas típicos de romances folhetins. Neste cenário, fazer um balanço, em apertada síntese, não é, confesso, tarefa simples. Parto, pois, das lembranças de meus estudos sobre as lições de Karel Kosík, filósofo marxista de origem tcheca, que publica em 1963 sua mais famosa obra intitulada "Dialética do concreto". Partindo do materialismo dialético, afirma ser a tarefa do pesquisador a superação das aparências para o alcance das essenciais. Em suma, nossas ferramentas sensoriais são importantes, porém mostram apenas parte da realidade ou, até mesmo, levam-nos ao engano. Desvendar o oculto, a essência dos objetos, portanto, é a razão da ciência. Qual seria, então, a essência deste julgamento?
Tal pergunta, para ser satisfatoriamente respondida, demandará futuros e profundos estudos a respeito do caso. Neste ponto, aliás, a Ação Penal nº 470 mostra já sua primeira peculiaridade. Parece-me que tal processo possui uma vocação a objeto de pesquisa, eis que não será surpresa se estudiosos, daqueles com seriedade, resolverem se debruçar sobre o julgamento para examiná-lo detalhadamente sob a lupa severa da dogmática penal ou da criminologia. Certamente a ciência muito ainda dirá, ao seu tempo e com o distanciamento necessário.
Contudo, quero aqui aprofundar outro ponto desta "essência". Teria sido o julgamento conduzido pelo Supremo Tribunal Federal, como apontado por alguns e refutado por outros, "político"? Confesso que, até para não contrariar tese de doutoramento por mim já defendida, tendo a dizer que sim. Ponho, contudo, uma ressalva. Necessário se faz entender o que quer dizer a polissêmica expressão "político". Evidente que não é possível identificar aqui o vocábulo "político" como sinônimo de parcial, de algo promovido por interesses pessoais, de grupos ou mesmo subreptício. Faço-me claro ao dizer que "político", no contexto que emprego, não possui um conteúdo pejorativo, comportamental ou partidário. Ao contrário, trata-se da complexa arte de exercício do poder, de decidir amparado na autoridade conferida a determinado cidadão. Se verdade é que a atividade política do magistrado é, em parte, contida pela previsibilidade do direito, é também inegável que os espaços de decisão estão sempre presentes. Em 2008 escrevi que "o julgamento a respeito da existência de um crime e da determinação da pena encerra uma valoração. Nesse sentido, trata-se de uma expressão de poder. O juiz, ao proferir uma sentença, atua politicamente" ("Finalidades da pena: conceito material de delito e sistema penal integral", São Paulo, Quartier Latin, p. 278).
Um exemplo é esclarecedor. Em determinado momento do julgamento debateu-se qual seria a prova necessária para proferir um édito de condenação. Na verdade, mais do que discutir como valorar a prova, debatia-se o que reconhecer como prova. O conceito de prova, assim, mostrava-se normativo, apto ao preenchimento de seu significado. Cuida-se, assim, de um ato de julgar, de escolher, com as consequências que esta opção acarreta. Houve um entendimento, pelo que pude compreender de alguns ministros, de que a prova, para ser entendida como tal, não demandava o contraditório judicial, poderia ser produzida em etapas prévias de investigação, como um inquérito policial ou comissão parlamentar de inquérito.
Escolheu-se, assim, um, dentre vários possíveis, significados. Essa opção é política e conduziu, provavelmente, para a maior facilidade argumentativa de condenações. A restrição do conceito de prova, outra possibilidade viável, certamente dificultaria as teses acusatórias. A opção tomada derivou do exercício legítimo do poder, talvez com o fito de não se arcar com o custo de absolvições indesejadas pela opinião pública. Outro flanco, porém, abriu-se com a relativização de princípios processuais como o já mencionado contraditório, o que redundará na reprodução deste mesmo raciocínio em instâncias jurídicas outras. Essa complexidade decisória permite, entendo eu, alcunhá-la de política, não para deslegitimá-la, mas apenas para demonstrar que é fruto do poder e de opiniões, posicionamentos, escolhas de significados. Nesse meandro, como diria o Prof. Antonio Luis Chaves Camargo, meu saudoso orientador, inexistem certezas. Talvez seja essa uma das mensagens deixadas pelo julgamento. Afinal, essa dimensão política, tantas vezes escamoteada, é o que gera o encanto e, ao mesmo tempo, a apreensão, os desafios e as incertezas no estudo do direito.
Alamiro Velludo Salvador Netto é professor doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)
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