A revolta dos centavos
:: Armando Castelar
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ipea) e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Quem circulou pelas demonstrações de rua que tomam conta do país observou que são dominadas por jovens, gente sem filiação partidária.
São jovens que resolveram “levantar do sofá”, na expressão de um cartaz, e lutar por um futuro melhor. Por isso reclamam de absurdos como a “cura gay” e a decisão de investir dezenas de bilhões de reais em estádios de futebol, quando a infraestrutura e os serviços públicos no país são o que são. E, acima de tudo, reclamam da corrupção impune, sobre a qual leem diariamente nos cadernos de política.
Talvez as manifestações tenham surpreendido o país, pois essas coisas acabaram se tornando “normais”, não surpreendem mais ninguém. Mas, quando se dá um passo atrás e se pensa que o dinheiro do contribuinte está financiando a farra da corrupção e do desperdício — e a alta carga tributária é um tema dos cartazes —, a surpresa é como isso pode ter se tornado tão normal. Isso ajuda a entender por que o ministro Joaquim Barbosa surge como principal modelo de homem público nas pesquisas com manifestantes.
Como em outras manifestações dos últimos 30 anos, e ao contrário do que ocorre na Europa, a situação da economia não é o foco dos protestos. O aumento da tarifa dos ônibus foi o estopim, mas a revolta de fato é com a piora da qualidade do transporte público. Com um modelo econômico que estimula a compra de automóveis e subsidia a gasolina, mas nada faz pela infraestrutura, não surpreende que as pessoas se revoltem.
Apesar de não diretamente relacionadas, chama a atenção que as manifestações coincidam com o quadro de agravamento da economia. Esse vem em curso há algum tempo, refletindo a queda do potencial de crescimento e erros de política econômica. Isso faz com que, mesmo com o PIB crescendo pouco, a inflação permaneça bem acima da meta.
Mais recentemente, a situação da economia agravou-se, por conta da piora das contas externas. A queda do crescimento da Ásia emergente, como já discuti neste espaço, tem afetado as exportações, derrubando o saldo comercial. Não será surpresa se esse ficar perto de zero este ano e virar negativo em 2014. O deficit em conta corrente aumenta em ritmo acelerado, batendo em 3,2% do PIB nos 12 meses encerrados em maio.
A confirmação, semana passada, de que o FED, o banco central americano, deve começar a desmontar o programa de afrouxamento monetário ainda este ano derrubou o preço dos ativos brasileiros. Com isso, o real desvalorizou-se e os juros longos subiram. O preço das commodities caiu ainda mais. É notável a magnitude dessas variações, considerando-se que o FED sinalizou que tudo será feito devagar e que só deve começar a elevar os juros em 2015.
A desvalorização do real não deve ser transitória, como em 2008. Há, de fato, uma mudança na situação externa, em que bens e ativos brasileiros ficaram menos valiosos. A forma mais saudável de a economia processar isso é via a desvalorização do câmbio.
A boa notícia é que isso tornará a indústria mais competitiva e o crescimento mais equilibrado. A má notícia é que as pressões inflacionárias aumentarão e que o ajuste a essa nova situação vai exigir uma queda dos rendimentos reais. Caberá à política econômica fazer com que esse ajuste ocorra com o menor custo possível em termos de aceleração inflacionária e queda do nível de atividade.
O que não é possível, porém, é achar que tudo poderá continuar como antes. Em especial, o mercado de trabalho, que já vem piorando, deve passar por um ajuste mais forte. Dessa forma poderá processar a perda de renda decorrente da piora das condições externas, sem a necessidade de uma alta muito grande na inflação.
Dois outros mercados vão passar por ajustes: o de crédito e o imobiliário. O primeiro sofrerá com a deterioração do mercado de trabalho. Felizmente, o crédito ao consumo cresceu pouco no último par de anos. A situação dos bancos públicos é, porém, menos robusta. O mercado imobiliário deve sofrer, pois os imóveis devem se desvalorizar, como já ocorreu com outros ativos mais líquidos.
Nesse quadro, deve-se observar para onde andará a onda de protestos. As últimas grandes manifestações no país — 1992, 1984, 1968, 1962-64 — se deram em momentos em que a situação econômica tinha piorado. Se o cenário traçado acima se confirmar, o número de manifestantes vai aumentar e a pauta de reivindicações pode se ampliar. Como dizem os jovens nas redes sociais, a revolta não é pelos centavos, mas pelos nossos direitos.
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