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segunda-feira, março 03, 2008
BAÍA DE GUANTÁNAMO/CUBA: "LIBERTAS QUAE SERA TAMEN"
Hoje, a base americana tem 275 detentos e 1.850 militares. Em seis anos, mais de 750 pessoas estiveram presas nos campos. Dessas, só 13 foram acusadas de algum crime. Discretamente, o governo já liberou ou transferiu para outros países mais de 500 pessoas sem nenhuma acusação formal. Agora, nos estertores do governo de George W. Bush, os EUA prometem julgar até 80 prisioneiros. Bush, em seu último ano de mandato, corre contra o relógio para recuperar um pouco da reputação americana, comprometida por causa das violações de direitos humanos na prisão. No último ano da administração, e, talvez, de Guantánamo, há pressa para mostrar serviço. Em abril ou maio as comissões militares de Guantánamo devem começar o julgamento de Khalid Sheik Mohammad (KSM, no jargão militar) e outros cinco presos acusados de colaborar com a Al-Qaeda. O governo americano pediu pena de morte para todos. KSM admitiu na TV Al-Jazira ter sido um dos idealizadores do 11 de Setembro, entre outros ataques. Bush tem pressa para mostrar que Guantánamo teve alguma utilidade. Até agora, só um prisioneiro, o australiano David Hicks, foi condenado (na realidade, declarou-se culpado). As excursões para a mídia fazem parte da ofensiva de relações públicas do governo para mostrar que Guantánamo "não é tão ruim assim". O famigerado Campo Raio X - com suas imagens indeléveis de prisioneiros de macacão laranja, capuz e em gaiolas - é hoje um lugar fantasmagórico, cheio de mato. O Pentágono faz questão de levar jornalistas ao Raio X, para mostrar que ele é coisa do passado. Hoje, os detentos têm direito a celas com ar condicionado, três refeições por dia, um exemplar do Alcorão, chinelos de dedo. Se forem bem comportados, ganham até um rolo de papel higiênico extra e baralho.
No Campo 4, onde ficam os considerados menos perigosos, há aulas de pashtun, árabe e inglês. Os prisioneiros têm até um cantinho para praticar jardinagem. Na biblioteca do Campo 4, é possível ler O Diário de um Mago, de Paulo Coelho, em farsi.Nos Campos 5 e 6, de alta segurança, ficam os presos mais perigosos e aqueles com mau comportamento. Lá, eles ficam em isolamento 22 horas por dia - mas ainda em celas com ar condicionado, com direito a pasta e escova de dente e três refeições. Existe ainda o Campo 7, cuja existência só foi revelada há pouco tempo e a localização, mantida em sigilo. Lá ficam os chamados "detentos de alto valor", como KSM. De fato, comparado com algumas prisões no Brasil, Guantánamo parece hotel cinco-estrelas. "Muitos detentos nem querem voltar para casa, querem ficar aqui", exagera o sargento Michael Owens. É fácil esquecer que Guantánamo é uma prisão - ao passear pela baía, tudo o que se vê são praias paradisíacas do Caribe, com água transparente, onde muitos militares mergulham ou passeiam de barco. Iguanas e banana rats, grandes roedores típicos de Cuba, correm entre os cactus. Ou, como disse o vice-presidente Dick Cheney dois anos atrás: "(Os prisioneiros) moram nos trópicos. São bem alimentados. Têm tudo o que poderiam querer." Mas acontece que muitos prisioneiros continuam aqui sem nenhuma esperança de serem julgados por seus crimes. "É como passar batom num porco", compara o advogado David Cynamon, que representa vários detentos de Guantánamo." Enquanto os prisioneiros não tiverem acesso a um julgamento justo, todo o resto é cosmético." Segundo Cynamon, não existem mais "as coisas medievais que ocorreram até 2003, mas as pessoas ainda estão aqui sem direito a julgamento, sem saberem do que são acusadas, sem perspectiva de se defender". O governo aposta no julgamento dos seis para apaziguar a direita e a esquerda: os conservadores, com a condenação à morte de KSM; os liberais, com algum tipo de julgamento para os prisioneiros. Mas os advogados afirmam que o julgamento não será justo, porque eles não podem discutir a maioria das provas com seus clientes e porque o juiz poderá aceitar confissões obtidas por meio de tortura.
Suicídio e greve de fome
Para os guardas, Guantánamo é um emprego, só isso. "Tem gente que deveria estar aqui e tem gente que está por engano, só porque é muçulmano. Mas nas prisões dos EUA ocorre a mesma coisa: se você é negro pode acabar preso num bairro perigoso. Além do mais, você acha que eles tratam bem os presos no Afeganistão e no Iraque? Eles cortam a cabeça deles", diz um dos guardas. O Pentágono admite que quatro detentos se suicidaram. Atualmente, há dez presos em greve de fome, um dos quais não come há 900 dias - sobrevive até hoje porque, quando um prisioneiro rejeita nove refeições consecutivas, ele começa a ser alimentado por via intravenosa, à força. O número de prisioneiros em greve de fome já chegou a cem. Na opinião dos críticos, Guantánamo virou a justificativa que todos os ditadores sonhavam, todos os torturadores precisavam. "Olhe, até os EUA desrespeitam direitos humanos", exemplifica um advogado que não quis se identificar. Para o governo, há muita informação errada e os presos são orientados por advogados a dizer que foram torturados. "A versão é muito maior do que a realidade", diz o coronel Edward Bush, vice-comandante da área de relações públicas em Guantánamo. "Há campos de detentos no Iraque, Afeganistão, e nenhuma atenção da mídia para essas prisões." Segundo o Departamento de Defesa, existem 3 mil presos no Iraque e 620 no Afeganistão. Advogados dizem que a tortura ainda é comum nessas prisões. Os militares acham que não será assim tão simples fechar Guantánamo. "É fácil para um candidato dizer que fechará Guantánamo, mas ninguém sabe como fazer isso", diz o coronel Bush. McCain diz que vai transferir os presos para Fort Leavenworth, no Kansas. "Será que os EUA querem essa gente em solo americano?", diz Bush. Para Shane Kadidal, advogado do Centro de Direitos Constitucionais, que representa mais de cem prisioneiros, o governo reluta em fechar Guantánamo porque não quer admitir que há inocentes presos. "A maioria das pessoas aqui poderia ser repatriada, portanto, não deveria ser difícil fechar Guantánamo", diz Kadidal. Patrícia Campos Mello, enviada especial, Estadão. 0203. Foto matéria.
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