A tela fora do lugar
O professor britânico John Ellis, 55, do departamento de mídia e artes da Universidade de Londres, diz nunca ter dado uma "entrevista profunda" sobre o documentário "Muito Além do Cidadão Kane". Simon Hartog, diretor do filme, morreu em 1992, antes mesmo de a obra ser exibida no Reino Unido. Ellis tornou-se assim uma testemunha rara dos bastidores de um dos mais polêmicos filmes sobre a mídia e a política brasileiras. Transmitido pela primeira vez em 1993, no canal britânico Channel 4, o filme usa o empresário Roberto Marinho (1904-2003) como metonímia da concentração da mídia no Brasil -daí a referência a Charles Foster Kane, personagem criado por Orson Welles em "Cidadão Kane" (1941). Políticos como Leonel Brizola (1922-2004), Antonio Carlos Magalhães (1927-2007) e Luiz Inácio Lula da Silva -apresentado como líder sindical- falam sobre a emissora no filme. Hoje, ao comentar o governo Lula em entrevista à Folha, Ellis critica a criação de uma TV pública no Brasil. "Talvez seja tarde demais", pondera, por e-mail, de Londres. Completando 15 anos, "Muito Além do Cidadão Kane" nunca foi transmitido pela TV brasileira -nem poderia, por questões de direitos de imagem. Virou, apesar disso, ou talvez por isso, um ícone na luta pela democratização do acesso à informação desde os anos 90, quando já circulava em VHS nos sebos e nas universidades. O documentário, que custou cerca de US$ 260 mil [R$ 445 mil] à extinta produtora independente Large Door, na qual Hartog e Ellis eram sócios, já foi visto cerca de 800 mil vezes na internet. Nos fóruns da rede, é elogiado, criticado e ganha a alcunha de "a história proibida da Rede Globo".
FOLHA - O que acha de o governo Lula tentar erguer uma TV pública?
ELLIS - Talvez seja tarde demais para a criação de uma TV pública. O que ela mostraria na maior parte do tempo? Há, claro, sempre espaço para uma melhora da informação pública na TV, tanto em notícias, em programas factuais, quanto nos assuntos presentes nas novelas, e como eles são abordados. A experiência no Reino Unido mostra que a TV pública deve ser separada do governo. Esse modelo de TV pública é possível no Brasil? Nenhum governo que eu conheço iria querer criar agora uma empresa de telecomunicações se não pudesse controlá-la diretamente. Especialmente agora, quando há muitas TVs espalhadas pelo mundo. O serviço público de TV na Europa foi iniciado em uma época em que a TV era uma novidade. Mesmo que a BBC seja separada do poder, quando a emissora foi realmente contra o governo em questões políticas específicas, o governo conseguiu reagir de maneira bem-sucedida contra essa oposição. O sucesso da TV pública independente no Reino Unido não foi propriamente na área da política. Entretanto foi bem-sucedida na educação pública, sobre temas locais importantes, na participação social, na proteção do consumidor e até em melhorar o padrão geral dos programas no país.
FOLHA - O sr. acha que o documentário "Muito Além do Cidadão Kane" ainda é atual?
ELLIS - Ele descreve uma situação que evoluiu, mas não sei bem qual é a profundidade dessas mudanças. O filme é bem-sucedido também, com a ajuda de muitos arquivos que permitem fazer essa oposição, em contar a história do crescimento da dominação da Globo na mídia brasileira. Essa é uma história importante e deveria ser conhecida pelo menos por todos que estão estudando a mídia nas universidades e qualquer pessoa que estiver interessada na história política do Brasil.
FOLHA - Há quem diga que o Channel 4 encomendou seu documentário para atacar a Globo, que ameaçava entrar no mercado europeu de TV. Isso é verdade?
ELLIS- Definitivamente não. O objetivo do programa era justamente entender a TV no Brasil. No passado, o Channel 4 exibiu pelo menos uma novela da Globo ("Escrava Isaura"), mas a produção não foi um grande sucesso. Há uma enorme diferença entre a cultura das TVs do norte e do sul da Europa. A Globo teria mais chances em mercados como Espanha, Itália, Grécia ou, especialmente, Portugal, mas não no Reino Unido. A competição no Reino Unido vem das empresas norte-americanas e das empresas de Rupert Murdoch (News International, BSkyB e o conglomerado da Fox).
FOLHA - O filme foi proibido?
ELLIS - Isso não é verdade. A Large Door concedeu o direito de exibir o programa em eventos e em público a diversas organizações no Brasil. Não poderia ser transmitido pela televisão porque muitas imagens pertencem à TV Globo. Fiquei sabendo que o vídeo foi mostrado em muitos eventos públicos no Brasil. Ele foi feito por meio da lei britânica de direitos autorais, que permite o uso de trabalhos escritos e, por extensão, audiovisuais, desde que "com o propósito de fazer comentários e revisões críticas" [sobre aquela obra]. O documentário foi finalizado por Simon em março de 1992. Ele entrou em coma no início de junho daquele ano e morreu em 17 de agosto sem ter recobrado a consciência. Eu supervisionei a revisão do programa e a inclusão de uma entrevista para atualizar o filme, que foi ao ar em maio de 1993. No Brasil, talvez você possa considerar que o filme é proibido, já que a recusa da Globo em ceder os direitos de exibição de suas imagens significa que ele não pode ser transmitido por canais brasileiros.
FOLHA - O documentário é apontado por alguns como um produto manipulador, que usa uma falsa linearidade para induzir o público a acatar sua posição.
ELLIS - Toda representação "manipula" o público. O filme tem uma narração linear exatamente porque quer mostrar o crescimento do poder da mídia durante um período difícil da história moderna do Brasil. Ele foi feito para uma audiência no Reino Unido que não sabia nada sobre a história do Brasil, não se esqueça! Deveria haver outras narrativas sobre essa história também.
FOLHA - Nos últimos anos, o Brasil viu se intensificar uma guerra entre a Record e a Globo. O sr. tem acompanhado?
ELLIS - Não tenho acompanhado de perto esse essa história. Mas sei que duas empresas estavam interessadas em comprar os direitos de "Muito Além do Cidadão Kane" no Brasil quando ele foi mostrado pela primeira vez no Reino Unido. Uma era a própria Globo.Eles perderam o interesse quando disse a eles que poderiam comprar os direitos de TV, mas não as licenças para exibição em público e a distribuição de VHS, já que esses direitos já haviam sido concedidos a outras organizações no Brasil.A outra empresa era a TV Record. A igreja [Universal do Reino de Deus] já tinha uma filial em Londres naquela época. Mas percebeu que haveria uma disputa judicial com a TV Globo a respeito das muitas imagens retiradas da programação deles. Então decidiu não comprá-lo. DIÓGENES MUNIZ; DA FOLHA ONLINE. 0103. Foto matéria.
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