Breves impressões do acórdão da Ação Penal 470
Por Alamiro Velludo Salvador Netto
Após a publicação do longuíssimo acórdão pelo Supremo Tribunal Federal (STF), será iniciada uma nova fase no julgamento da Ação Penal nº 470, desta vez com a apreciação dos embargos declaratórios a serem opostos pelas defesas dos réus condenados. Além disso, a leitura da decisão, com a participação de todos os ministros, apresenta relevância que extrapola os exclusivos interesses das partes envolvidas no processo.
A magnitude do julgamento, os temas enfrentados e o fato de se tratar de posicionamentos proferidos pelo órgão mais importante do Poder Judiciário conduzem a que toda a sociedade brasileira volte também suas atenções para tudo que ali foi dito ou escrito.
Mesmo que o acórdão não reproduza integralmente os debates ocorridos no plenário, pois alguns ministros, conforme lhes é permitido, suprimiram partes de suas intervenções, uma primeira leitura do julgado já indica para algumas polêmicas, principalmente se situadas no âmbito da construção científica do direito penal e sua histórica trajetória de intensificação do gradativo apego aos direito e garantias fundamentais.
Se Von Liszt já destaca em 1882 que o Código Penal, antes de tudo, era a Carta Magna do delinquente, o Brasil também alcançou conquistas importantíssimas com a elaboração da atual parte geral do Código Penal em 1984, já antecipando, naquela época, a dimensão normativa e as nucleações constitucionais que iniciariam sua vigência quatro anos depois. Desse modo, não parece ser muito simples aceitar, sem divergir, responsabilizações penais que estejam fundamentadas em meros indícios, que não descrevam a conduta especificamente praticada por cada um dos imputados ou que entenda ser suficiente a ocupação de um cargo qualquer para daí extrair as razões de julgar.
De fato, um dos maiores problemas enfrentados por penalistas de qualquer tempo e lugar, é a resolução dos denominados critérios de imputação. Em outras palavras, cuida-se do problema de atribuir um resultado a alguém, de entender uma ocorrência como "obra de um autor". Muito singelo exemplo pode auxiliar a compreensão: se um sujeito "A" dispara sua arma contra "B", pode-se dizer que o resultado "morte de B" é imputável à conduta de "A", isto é, ele será responsabilizado pelo resultado que ocasionou. Mas a simplicidade da questão pode começar a ser diluída. Seria também responsável o indivíduo que vendeu a arma para "A" executar o seu desafeto? E se a venda foi ilegal? E se o vendedor soubesse que "A" cometeria um crime? Mais ainda, como ficaria a responsabilidade de um amigo de "A" que, sabedor de seu intento criminoso, nada fizesse? Todas estas questões são bastante complexas e demandam teorias diversas que chegam a respostas nem sempre semelhantes.
Porém, em todas elas, algo é necessário e pressuposto. Seja o vendedor de armas, o político importante, o policial que invade desastradamente um estabelecimento prisional, em todos estes casos é preciso individualizar as condutas, eis que saber o que fez cada um é o ponto de partida necessário para um juízo de imputação penal. Não há como imputar algo como "obra de alguém" sem definir os contornos da conduta deste alguém, seja ela entendida como ação ou omissão. A exigência penal de individualização das condutas não é um preciosismo, porém a condição pela qual uma pessoa pode ser responsabilizada.
Trata-se de uma garantia que supera qualquer outro aspecto, com a qual não se transige, devendo ser respeitada até em situações cujas ocorrências submetidas a julgamento afrontem os mais altos valores sociais. O episódio do Massacre do Carandiru, certamente uma das mais vexatórias e tristes páginas da história deste país, levantou esta problemática ao avaliar a imputação das diversas mortes a específicos policiais. No contexto da criminalidade econômica, o julgamento do mensalão busca, mais uma vez, relativizar esta exigência de individualização. Cuida-se de postura delicada. Em suma, a dificuldade de provar eventuais delitos e autores não pode implicar na sublimação de princípios. O resultado disso é uma discutível decisão que parece substituir a verdade real pela verdade suficiente, alça o indício à condição de prova (folha 1.497 e seguintes do acórdão) e fundamenta utilizando-se mais de perguntas que de respostas (folha 2.018 e seguintes).
Alamiro Velludo Salvador Netto é professor doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário