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terça-feira, novembro 29, 2011

"CRACK" [In:] A DESMONTAR FUTUROS ''CRAQUES"

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Estamos fumando crack

Autor(es): Edmar Oliveira
Correio Braziliense - 29/11/2011

Psiquiatra, ex-diretor do Instituto Nise da Silveira (RJ), é autor dos livros Ouvindo vozes (Vieira & Lent, 2009, RJ) e Von Meduna (Oficina da Palavra, 2011, PI), ambos sobre práticas em saúde mental

Estamos assistindo ao desmonte de um conjunto de políticas modernas e revolucionárias na área da saúde mental e à reimplantação de um modelo cruel e historicamente falido. Vamos olhar a questão por uma lente grande angular: setores hipócritas da sociedade, uma mídia alarmista e políticas públicas equivocadas (quando não intencionais) estão usando o crack para criminalizar a pobreza e atacar os bolsões de populações em situação de vulnerabilidade com o eufemismo do "acolhimento involuntário". Construção inconciliável, que nós, os que trabalhamos no campo da saúde mental, sabemos ser falsa: ou bem o acolhimento é voluntário ou, se involuntário, aí não é mais acolhimento, e sim recolhimento. Primeiro veio o ataque às cracolândias de São Paulo, depois às da Cidade Maravilhosa, que precisa ser "higienizada" para os eventos do calendário esportivo mundial. E por imitação, a prática se alastra.

A situação complexa de pessoas em situação de vulnerabilidade não pode ser entendida de forma simplificada e menos ainda ser resolvida por atitudes apressadas. Para enfrentar a disseminação do uso de crack e de outras drogas (o álcool, droga lícita permitida, sempre é consumido junto), o Ministério da Saúde vinha adotando uma Política Nacional de Enfrentamento ao Álcool e outras Drogas (Pead), que previa uma complexidade de equipamentos comunitários, móveis e hospitalares. São os Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas (Caps), com funcionamento 24 horas; a aproximação à rede básica, por meio dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (os Nasfs); as Casas de Acolhimento Transitório (as Cats), para pessoas em situação de vulnerabilidade territorial; os consultórios de rua, móveis, para o acolhimento e atenção dessas pessoas; e os leitos hospitalares de referência nos hospitais gerais (sim, porque só neles podem ser tratados os agravos clínicos consequentes ao uso de drogas lícitas e ilícitas), além dos hospitais especializados.

Ou seja: a situação complexa do usuário deve ser atendida de forma também complexa, com um conjunto de dispositivos adequados a cada momento. O leito de acolhimento não é o mesmo do hospital geral ou o do hospital especializado. Eles não competem entre si, mas são complementares, segundo a necessidade do usuário. A política do recolhimento involuntário oferece apenas um dispositivo: a antiga e inadequada internação psiquiátrica, que a mesma política de saúde mental vinha combatendo, por seu caráter repressivo e violador dos direitos humanos. Essa forma é apenas um retorno ao "tratamento moral" do começo da psiquiatria no século 18.

Assistir ao desmantelamento das políticas complexas, que ainda estavam em ritmo de implantação, para a recuperação de um modelo já condenado, é um martírio que os militantes da construção da reforma psiquiátrica estão vivendo. A reforma psiquiátrica tornou possíveis os dispositivos comunitários de saúde mental, reduzindo consideravelmente o uso do hospital psiquiátrico especializado. Pior é saber que o modelo da internação (na contramão da reforma), proposto atualmente, condena à exclusão intencional, em nome do tratamento, populações vulneráveis que sofrem da epidemia de abandono social. E para as quais haveriam de ser implantadas políticas públicas sociais, educacionais, habitacionais e de emprego, propondo a inclusão dessas pessoas que ficaram para trás no apressamento competitivo dessa sociedade.

Pois não é o crack a epidemia a ser enfrentada, mas o abandono de populações marginalizadas que não encontram lugar. Talvez por isso eles se juntam nos guetos, onde ainda encontram a solidariedade dos iguais, já que a sociedade não tem ambiente para essa gente que não soube encontrar seu lugar. É a partir dos guetos, espaços que geralmente são depósitos de lixo, que os abandonados gritam que são o lixo humano, onde estão presos à impossibilidade de pertencimento à sociedade moderna.

Voltando a olhar pela lente grande angular: não é pelo uso do crack que eles se encontram nesses lugares marginalizados a que chamam de cracolândia, mas por estarem nesses lugares em situação de vulnerabilidade e abandono é que — também — fazem uso do crack. Todos nós estamos "usando" o crack para esconder nossa sujeira debaixo do tapete.

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